Alien Hearth - Noah Hawley reencontra o terror da saga ao transformar o lar no novo pesadelo da ficção científica 

Desde Legion, Noah Hawley se firmou como um dos poucos criadores de televisão capazes de manipular gêneros com a mão leve de quem entende a linguagem em todos os seus níveis - conceitual, visual, emocional e metafísico. Em Alien Hearth, ele retorna a essa vocação, mas agora dentro de um universo cuja identidade parecia cristalizada desde 1979. O gesto é ousado: mexer em Alien é tocar em algo tão fundamental ao terror de ficção científica que qualquer alteração mínima soa como heresia. Hawley, porém, não só mexe. Ele refaz, reorganiza, expande e, sobretudo, reimagina o que significa provocar medo nesse cosmos onde o industrial, o biológico e o corporativo sempre se chocaram com violência.

O que mais impressiona de imediato é como Hawley recupera, com precisão quase arqueológica, aquilo que Ridley Scott capturou no primeiro filme: a fisicalidade das naves, o peso dos corredores, a textura úmida e orgânica dos espaços. Mas ele não replica - ele compreende. E ao compreender, ele repensa. Se Scott filmava operários cansados que, mesmo perdidos numa galáxia de possibilidades, estavam apenas ali “fazendo seu trabalho”, Hawley resgata esse espírito e o reinsere em novos conflitos, em novas feridas e, principalmente, em novos corpos. A ideia de rotina esmagada por forças incompreensíveis permanece, agora filtrada por sensibilidades contemporâneas e por um entendimento ampliado do terror como instrumento narrativo.

E aqui está o ponto que torna Alien Hearth imediatamente mais instigante que outras tentativas recentes: Hawley desmistifica a ficção científica para reencontrar o terror. De certo modo, ele faz o que Alien Romulus - a obra mais radical do universo desde o filme original - também realizou: quebra a distância histórica entre o espectador e o mito. O monstro deixa de ser um ícone e volta a ser uma presença, uma ameaça que não depende de grandiosidade para existir. É quase um retorno à intimidade do horror.

Ainda assim, é impossível dizer que Alien Hearth se satisfaz com o básico. Ao contrário. Em vários episódios, Hawley brinca com gêneros, desmonta convenções, reestrutura clímax e reorganiza o que se espera de uma narrativa de ficção científica. Seu olhar onírico, sempre tão presente, reaparece nas transições, nos pequenos simbolismos, nos planos que revelam mais do que a mise-en-scène permite explicar. O resultado é uma temporada cujo design de produção impressiona, mas que também guarda, no micro e no macro, uma elaboração temática que faz o universo expandir mesmo quando a trama permanece contida.

É curioso notar como, mesmo sendo uma série que possivelmente não terá segunda temporada, tudo é resolvido com a precisão de quem sabe exatamente onde quer chegar. Alien Hearth funciona como introdução de um novo escopo narrativo, mas também como obra fechada, segura de seus hábitos, firme em suas ambições. Se o futuro da série nunca chegar, a temporada já basta.

Entre suas inúmeras camadas conceituais, Hawley encontra espaço para um dos debates mais fascinantes do universo Alien: a tensão entre híbridos, sintéticos e ciborgues. Esse é um subtema que sempre pulsou na franquia, mas aqui ganha corpo próprio - e ganha, principalmente, uma personagem capaz de materializá-lo com uma força quase mítica. Sidney Chandler é absurda como WEND, uma sintética híbrida cuja existência carrega uma ressonância emocional e filosófica raramente vista no audiovisual de grande escala. O nome já entrega a chave de leitura: sim, a série brinca com Peter Pan, mas não pela leveza infantil - e sim pela crueldade de aprisionar “crianças” dentro de corpos que não lhes pertencem, corpos usados pelo sistema como armas, ferramentas, quase super-heróis corporativos.

O trabalho de Chandler é notável porque ela encontra humanidade em algo que a série insiste em problematizar. WEND não é só um elo dramático; ela é o ponto onde o universo inteiro parece se reorganizar. E isso inclui o próprio Xenomorfo.

Talvez o gesto mais corajoso de Hawley seja justamente esse: transformar o Xenomorfo em apenas mais um entre muitos monstros. A analogia com Stranger Things é inevitável - lá, o Demogorgon perdeu o status de ameaça máxima conforme o universo cresceu e outras presenças o superaram em poder. Aqui, Hawley faz o mesmo com uma precisão cirúrgica. Existem criaturas maiores, mais complexas, mais aterrorizantes, e o Xenomorfo se torna parte de um ecossistema. Ele existe, sim, mas não reina. E essa mudança reposiciona a criatura para algo ainda mais fascinante: um símbolo que, ao ser descentralizado, ganha possibilidades narrativas inéditas.

É nesse ponto que surge um dos movimentos mais brilhantes da temporada: a conexão direta entre WEND e o Xenomorfo. Ela, híbrida e consciente, acaba funcionando como catalisadora de uma nova invenção - uma espécie de consciência do monstro, algo que não existia e que, pela primeira vez, abre espaço para implicações que ultrapassam a lógica tradicional da franquia. É uma ousadia que poderia facilmente fracassar, mas Hawley nunca perde o controle do que está propondo.

Entre tantos acertos, um episódio se destaca como síntese da temporada e como prova da capacidade de Hawley de equilibrar reverência e reinvenção: o episódio 6. Ali, ele praticamente reconstrói Alien – O Oitavo Passageiro. Os corredores estreitos, a iluminação intermitente, a sensação de que a nave respira, a organização do suspense - tudo ecoa o filme de 1979. Mas não é citação. Não é homenagem. É reformulação. Hawley pega a estrutura clássica e a remolda, repagina, reimagina. O episódio funciona como memória e como novidade, lembrança e futuro, respeito e risco. É, sem qualquer exagero, um dos grandes momentos da televisão recente.

E se tudo isso funciona tão bem, é porque Hawley tem um entendimento profundamente criativo sobre os mundos que constrói. Ele não apenas escreve; ele cria respiros, fabrica atmosferas, pensa formas enquanto pensa temas. Como em Legion, ele usa dispositivos, ferramentas e símbolos para traduzir sensações. O resultado é uma série que não só expande o universo Alien, mas também reafirma Hawley como um dos grandes arquitetos de realidades da televisão contemporânea.

Alien Hearth é, portanto, uma das obras mais estimulantes da franquia. Não porque tenta ser maior, mas porque tenta ser outra coisa - mais íntima, mais assombrada, mais audaciosa. É uma ficção científica que, antes de tudo, quer ser terror. Que quer que a gente sinta a respiração do monstro antes mesmo de vê-lo. Que quer que os corredores, as máquinas, as texturas digam algo sobre os corpos que habitam aquele espaço.

Mesmo que não tenhamos uma continuação, a temporada já deixa sua marca: uma reconstrução emocional e estética de um universo que parecia esgotado, mas que ainda guarda medos inéditos.

Uma baita série. E uma das melhores do ano.


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