A utopia de Hayao Miyazaki e o antifascismo

Spoilers

1. A história de Miyazaki como uma metáfora

"O Menino e a Garça" se passa durante a Segunda Guerra Mundial. O filme conta uma história de fantasia ambientada em um mundo diferente, que representa uma metáfora para a guerra. Essa metáfora é o núcleo mais importante de todo o filme e o tema principal que o diretor quis expressar.

A primeira metáfora é a do periquito do fascismo. Quando a menina (mãe de Mahito) é levada pelo Rei Periquito para conhecer o avô, os periquitos que cercam o rei erguem muitos cartazes com as letras "DUCH". O que isso significa? Essas letras são derivadas da palavra "Dutch", em inglês, e Miyazaki habilmente brinca com o público com um quebra-cabeça de palavras, removendo a letra silenciosa "T". A palavra "Dutch" é derivada da palavra alemã "Deutsch," que é um termo para a própria nacionalidade, o Império Alemão fascista. As bandeiras hasteadas pelos periquitos também são variações das bandeiras fascistas. Portanto, eles representam o fascismo.

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A segunda metáfora são os blocos de construção. Miyazaki criou esse mundo diferente, o que mostra que originalmente ele queria usar o filme para criar a própria utopia. Contudo, no final, ele percebeu que essa ideia não poderia ser executada, porque avô disse a Mahito que os blocos de construção (poder) não foram contaminados pelo mal e podem ser usados para construir um reino sem maldade. Mahito toca a ferida na orelha e diz: “Esta é uma prova da minha maldade.” Miyazaki quis dizer que os humanos são apenas pessoas comuns e também possuem toda a violência e maldade que as pessoas comuns têm. O ferimento na orelha, causado por uma briga, é prova disso. Portanto, não é que ele não ouse aceitar esses blocos de construção, mas ele está com medo. Ele teme que o próprio mal um dia corrompa os blocos de construção (poder) em suas mãos, e então ele se tornará um novo fascista.

Na verdade, o avô serve de alerta do passado. Ele criou o reino com as próprias mãos, criando também o império fascista. Esse é o resultado do próprio mal contaminando os blocos de construção (poder). Agora ele quer que o neto reescreva os erros que cometeu, mas o neto é mais sábio que ele. Ele sabe que cada um tem o próprio mal e ninguém pode criar a visão de um avô de uma utopia apenas com beleza, riqueza e paz.

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A terceira metáfora são os pelicanos e os pedintes com chapéus de palha e tigelas. O pelicano que está prestes a morrer queimado por Himi conta a Mahito que seu grupo foi trazido à força para esse lugar infernal, onde há poucos peixes para comer. Então, o grupo deles teve que optar por comer os Warawara (humanos) para evitar morrer de fome.

O pelicano diz que não importa o quão alto voem, eles não podem escapar desse mundo, que representa nosso mundo do fascismo pós-Segunda Guerra Mundial. Portanto, Miyazaki foi bastante claro: os pelicanos representam os refugiados que foram forçados a comer carne humana durante a Segunda Guerra Mundial. E aquelas inúmeras pessoas pedindo peixe com chapéus de palha e tigelas simbolizam as almas que morreram de fome após a guerra (de acordo com registros históricos, o número de mortes no Japão do pós-guerra devido à fome chegou a 10 milhões). Então, o trabalho de Kiriko é pescar peixes todos os dias para alimentá-los.

A quarta metáfora é a mãe, Hisako. A mãe de Mahito, Hisako, aparece pela primeira vez na oficina do pedreiro, e Miyazaki não explica suas origens. Mas ao saírem, a mãe e Kiriko passam por outra porta no corredor do espaço-tempo, e a mãe diz que o mundo por trás dessa porta é diferente do mundo real. Isso indica que o mundo de Hisako está em uma linha do tempo diferente para conhecer a garota do mundo real nesse mundo diferente. Quando eles vão embora, a garota do mundo real diz que Hisako experimentará o destino de ser queimada até a morte quando crescer, mas ela diz que não tem medo de fogo. Essa afirmação não tem nenhum significado especial; significa simplesmente que ela não tem medo da morte e aceita seu destino.

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2. O núcleo de Miyazaki permanece inalterado

Embora a obra mais recente de Hayao Miyazaki possa parecer obscura, depois de entendê-la, você perceberá que ainda é o mesmo Miyazaki. Apesar de essa forma ter se tornado mais complexa, o núcleo permanece inalterado. Ainda é uma expressão de paz, sentimentos anti-guerra e busca pela verdade, bondade e beleza.

Olhando para trás, para as obras de Miyazaki, desde "Nausicaä do Vale do Vento" em 1984 até ao presente, sete dos seus onze filmes expressam ideias anti-guerra. Portanto, pode-se dizer que o diretor nunca mudou suas crenças e dedicou toda a carreira à promoção de sentimentos anti-guerra. Esses ideais de busca da verdade, da bondade e da beleza influenciaram gerações de pessoas.

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Além disso, o filme mais recente carrega muitos ecos dos trabalhos anteriores de Miyazaki. Por exemplo, a torre lembra o balneário de "A Viagem de Chihiro", principalmente a cena em que sobem pela parede externa com vista para o mar. As almas flutuantes no outro mundo lembram os espíritos da floresta em "Princesa Mononoke". Os insetos voando na floresta na jornada dos personagens do mundo real e a garça no outro mundo lembram os insetos voadores de "Nausicaä do Vale do Vento". As notas de papel atacando as pessoas na sala de parto são como as pessoas de papel atacando o dragão branco em "A Viagem de Chihiro".

Portanto, esse filme parece familiar, e Miyazaki parece tê-lo organizado intencionalmente dessa forma, como um reflexo de suas obras ao longo da vida, realmente se despedindo do público.

No geral, o filme mais recente dele é visualmente impecável e a história é ainda mais engenhosa. Dessa vez, o diretor não se contenta mais em criar um filme que agrade ao público, mas entrega uma obra que ele mesmo disse que pode ser lentamente interpretada e contemplada pelas gerações futuras. Assim como outras obras do Studio Ghibli, vale a pena assisti-lo diversas vezes.

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Por fim, embora é possível dizer que "O Menino e a Garça" se inspira em "How Do You Live?", do autor japonês Genzaburo Yoshino, é mais parecido com "O livro das coisas perdidas" do autor britânico John Connolly. Poderíamos até dizer que esse livro é o próprio roteiro. "O livro das coisas perdidas" também se passa durante a Segunda Guerra Mundial e acompanha um menino que perdeu a mãe ao entrar acidentalmente em um mundo diferente por uma entrada no quintal, embarcando em uma jornada fantástica. Os leitores interessados podem conferir. Sem dúvida valerá a pena!

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