É um pouco decepcionante para mim que o principal ponto de discussão da nova versão live-action de A Pequena Sereia foque na raça da Ariel e não no fato de que a Disney continua produzindo versões ruins sem um pingo de originalidade. Para mim, a raça da Ariel é tão insignificante para o filme que nem vale a pena notar. Ainda assim, não pude evitar a conversa como qualquer outra pessoa e, um dia, conversando com uma amiga da China, ela levantou uma questão que quase conseguiu me convencer: se por mim tudo bem que a Ariel seja negra, então eu aceitaria que a Mulan fosse branca?

Minha reação imediata foi responder não, é claro que não. Mulan é uma história inerentemente chinesa e escalar uma atriz de outra raça distanciaria a história de seu contexto cultural de uma maneira desconfortável e inadequada. Então, por que para mim estava tudo bem a Ariel ser negra? Afinal, o argumento poderia ser que A Pequena Sereia é uma história europeia por natureza (embora eu diga que é uma história inerentemente queer, mas essa é uma outra questão). Se é europeia, então escalar uma atriz negra não a distanciaria de seu contexto cultural da mesma forma? Relacionada a isso, existe uma ideia que tenho visto ecoando pela internet: se a Disney quer fazer um filme sobre uma princesa negra, então eles deveriam usar uma história nativa africana, não uma europeia. À primeira vista, isso parece ser muito interessante e parece indicar que minhas opiniões sobre audições às cegas são inconsistentes. Na verdade, porém, esse argumento é simplista demais, e não leva em conta a história dos afro-americanos.
O fato cruel e deprimente é que muitos afro-americanos não têm uma conexão com histórias africanas em razão de sua experiência histórica na América do Norte. A Disney, como uma empresa estadunidense, está tentando se conectar com o público norte-americano, acima de tudo, então, se quisermos entender por que a Mulan é chinesa enquanto a Ariel é negra, é importante comparar os padrões de imigração dos asiáticos-americanos com os dos afro-americanos. Os asiáticos-americanos chegaram nos Estados Unidos, em sua maioria, de forma voluntária, buscando oportunidades econômicas. Eles podem remontar suas raízes à países e culturas específicas e preservaram uma conexão com eles. Os afro-americanos, por outro lado, foram trazidos à força aos Estados Unidos, em sua maioria, para serem escravos. Esforços deliberados foram feitos para que seus laços culturais fossem rompidos, e apesar da existência de testes genéticos, muitos afro-americanos não sabem exatamente de onde seus ancestrais vieram – a linhagem cultural está, de muitas formas, perdida.

Considerando que os asiáticos-americanos têm uma conexão mais direta e pessoal com as histórias asiáticas, então, muitos deles cresceram ouvindo histórias como as da Mulan. Por isso, faz sentido escolher histórias inerentemente asiáticas quando se faz um filme com uma personagem principal asiática. No entanto, no caso dos afro-americanos, dado que sua cultura ancestral foi, de muitas maneiras, arrancada deles, é pouco provável que eles tenham uma conexão com uma história africana. Então, com quais histórias eles teriam uma conexão? Para responder essa questão, temos que nos perguntar quais histórias existem agora para afro-americanos, e para os propósitos da Disney, quais são os contos de fada que os afro-americanos crescem assistindo?
Na verdade, não é uma questão difícil de responder: considerando que os afro-americanos crescem em um país no qual a cultura dominante é a cultura europeia branca e o sistema educacional destaca as histórias europeias brancas mais do que qualquer outra, é provável que eles tenham crescido e se conectado com contos de fadas europeus, como por exemplo, A Pequena Sereia... Faz sentido, então, que um filme com uma princesa negra seja baseado em uma história europeia, já que é a cultura com a qual tem maior conexão, e, portanto, a melhor maneira de representar sua realidade cultural.

Isso nos leva de volta à questão: acredito que a Mulan pode ser branca? A resposta é, por incrível que pareça, sim – mas apenas em circunstâncias específicas. Se houvesse um grande grupo de pessoas brancas criadas em um contexto chinês, que cresceram vendo a história da Mulan em vez da Cinderela, por que não? Eles merecem se ver em suas histórias de infância como qualquer outra pessoa.
Ao mesmo tempo, quero deixar claro que esse não é o único contexto ou argumento para mudar a raça de um personagem; é muito específico para o contexto das histórias infantis, e não poderia ser aplicado aos adultos de maneira alguma – geralmente essas mudanças são justificadas ao mudar a perspectiva da história através das escolhas de elenco. Por exemplo, o uso de “atores de grupos minoritários” em Hamilton permite que a plateia reexamine a Revolução Americana e a história de Alexander Hamilton enquanto destaca temas de raça e imigração que outras obras podem ignorar. Vale a pena considerar, no entanto, se todos os tipos de mídias que apresentam personagens ou atores que fazem parte de um grupo minoritário, seja ele racial, sexual, de gênero ou outro, precisam ser sobre sua identidade acima de qualquer outra coisa. Histórias sobre homens brancos podem ser apenas histórias – talvez, como uma cultura, devêssemos reconsiderar o porquê uma história sobre uma mulher negra ter de ser apenas sobre sua negritude.

Mas essa é uma discussão para outro momento. O que eu quero dizer é que uma mulher negra sendo escalada como Ariel não é apenas uma escolha neutra, é uma escolha lógica, levando em conta o contexto cultural dos Estados Unidos. E não só isso, embora o contexto cultural atual não seja adequado para termos uma raça diferente interpretando a Mulan ou qualquer outro personagem que está associado a uma origem étnica específica, existem algumas situações hipotéticas nas quais isso faria sentido. A Pequena Sereia é um bom filme? Não sei – eu nem assisti. Provavelmente não, porque raramente os live-actions da Disney são bons. Porém, se você escolheu não assistir porque a Ariel é interpretada por uma mulher negra... talvez você queira reconsiderar se há realmente um problema nisso!
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