
Para ser um executivo, é necessário que eu tenha uma vida disciplinada. Eu acordo com o despertador no mesmo horário toda manhã; uso o mesmo estilo de roupas; como o mesmo tipo de café da manhã; e vou para o mesmo lugar que me deixa exausto para trabalhar, dia após dia. Durante a época do colégio, eu podia ocasionalmente matar aulas e justificar minhas ações como um ato de rebeldia adolescente. Mas agora, não posso mais.
Se eu dissesse ao meu chefe o que Jac Torrance escreveu para si mesmo em O Iluminado: “Só trabalho, sem diversão, faz do Jack um bobão”, ele poderia pedir que eu sumisse da sua frente.
Eu nunca quis me tornar uma pessoa infinitamente repetitiva. Muitas vezes sinto que estou interpretando uma versão de mim com a qual meus pais, colegas, amigos, e até mesmo eu, estamos acostumados. Assim como Gary em Assassino por Acaso usa o mesmo livro didático para ensinar a mesma matéria, eu pareço estar vivendo o mesmo roteiro de vida para interpretar o meu “eu”. Quanto mais tempo vivo este tipo de vida, mais eu sinto que esse “eu” não é real. Eu me tornei uma concha vazia e uma imagem predeterminada que atende às expectativas dos outros.
Nunca é fácil para uma pessoa chata falar sobre sua chatice; qualquer tentativa relacionada a isso parecerá uma reclamação sem sentido. Este fenômeno é absurdo e injusto. Antes de assinar aquele maldito contrato de trabalho, pensei que ele era meu bilhete de ouro para um futuro brilhante. Por que agora parece um contrato em que eu vendo a minha alma?
Eu costumava amar meu trabalho; do contrário, eu não sentiria minha paixão por ele se dissipando. Mas não tenho certeza de quando e onde as coisas deram errado. Em Assassino por Acaso, a experiência de Gary de interpretar várias identidades me cativou. Talvez descobrir isso ajude um pouco.

Muitas pessoas bem-sucedidas defendem a autodisciplina, mas nem todo mundo consegue cultivá-la de uma única maneira. Alguns alcançam sucesso notável ao realizar tarefas repetitivas de longo prazo, enquanto outros se inspiram vagando por aí. Na maioria dos casos, o primeiro exemplo se alinha bem com a imagem que as pessoas têm de profissionais, enquanto o segundo é muitas vezes visto como um preguiçoso inútil, pelo menos até ter uma ideia surpreendente.
Do ponto de vista profissional, minha vida não é ruim. Contanto que eu seja diligente o bastante, eu me tornarei mais capacitado e eficiente na minha interpretação; eu terei um desempenho melhor no trabalho e, com isso, levarei mais dinheiro para casa. Com mais dinheiro na minha conta, terei um maior poder aquisitivo para aproveitar uma vida mais rica. Essa maneira de viver colhendo o que você planta faz parecer que estou predestinado a alcançar a felicidade; desde que eu continue, acabarei chegando lá.
O que me incomoda é o fato de as pessoas gradualmente considerarem a autodisciplina como uma obrigação com o passar do tempo. A obrigação é uma palavra nobre porque implica em autossacrifício; porém, quando surge a confusão entre obrigação e autodisciplina, somos destituídos do livre arbítrio até atingirmos os padrões exigidos de um indivíduo autodisciplinado.
Essa é uma transformação crônica e tóxica porque a autodisciplina deveria ser um produto da humanidade, não o contrário. Quando submetemos tudo em nossas vidas à regra da obrigação, a importância do cumprimento das obrigações supera a paixão que inicialmente nos levou a cumpri-las. As pessoas, inclusive nós mesmos, verão esses modelos aparentemente estabelecidos como um “padrão” que mantém o funcionamento normal das coisas e, inconscientemente, acreditarão que mudar é errado. Quando nos tornamos robôs que apenas cumprem obrigações, as razões que parecem lógicas, mas que na verdade não tem fundamento, como “você deveria fazer isso” ou “você não deveria ser assim”, podem reprimir nosso impulso de mudança, como se apagasse uma ponta de cigarro.
O crescimento sem obstáculos é a natureza de toda vida. Ao trocar de identidades, Gary se liberta das restrições de sua identidade original para redefinir a si mesmo e reacender a paixão pela vida. Por um momento, talvez porque eu não quisesse que a história terminasse, fiquei imaginando se isso não poderia ser transformada em uma série de TV.

Nas interações entre Gary e Madison, percebi que seu disfarce cria novos problemas para ele. Na verdade, ele está em um estado altamente contraditório, semelhante ao do gato de Schrödinger. Para continuar atraindo Madison, Gary tem que enriquecer a história de Ron com novas histórias, como se enchesse um ursinho de pelúcia com algodão. Enquanto suas mentiras não forem expostas, ele é, ao mesmo tempo, Ron e Gary. Porém, para Madison, é uma situação diferente. Se sua mentira for exposta, Ron deverá se tornar o Gary para que o relacionamento continue.
Um amor carregado de mentiras nunca poderá ser sustentado. Mesmo que o disfarce de Gary resista à realidade, ele inevitavelmente cairá em outro tipo de padrão por meio do ato repetitivo de se disfarçar e viverá constantemente como uma concha vazia. Tanto para Gary quanto para Madison, isso não significa nada além de viver como um zumbi.
Embora eu goste da premissa do filme, não fiquei satisfeito com o final criado pelo diretor Richard Linklater. Madison acidentalmente mata seu ex-marido idiota, Ray, e Gary, para protegê-la, trabalha com ela para matar seu colega, Jasper, que ameaça expor toda a verdade. Ray e Jasper são, de fato, babacas, mas eles não merecem morrer. Suas mortes são planejadas para satisfazer o amor de Gary e Madison, e isso só acentua o exagero deste final. Embora alguns espectadores possam torcer por isso, o filme não é diferente do ópio espiritual se apenas satisfaz o público através de prazeres falsos.
No entanto, foi exatamente depois que eu percebi o absurdo do enredo que eu tive uma sensação de libertação. O propósito inicial deste artigo era questionar meu estilo de vida rígido. Porém, o ato final de Gary não é uma forma de rigidez? No começo do filme, o que realmente me fez feliz não foi o fato de Gary adotar uma nova identidade, mas sim o fato dele se libertar de sua própria identidade. Há uma diferença sutil, mas essencial, entre as duas coisas. A primeira apenas reinicia um evento rígido inevitável, como a redefinição de fábrica do seu celular que está fadado a ficar lento com o uso.
Se alguém me perguntasse o que mais deveríamos fazer se não definirmos nossas próprias identidades, eu sinceramente não saberia a resposta. Acho que a melhor percepção que o filme nos dá é que não devemos fazer tal pergunta. Linklater provavelmente teve dificuldade em dar ao público uma resposta definitiva antes de chegar a um final forçado. Afinal, poderia ter sido mais bem recebido se fosse um final em aberto.
“Viver” é um verbo, enquanto “eu” é apenas um substantivo estático. Em vez de encontrar uma identidade estagnada, deveríamos apenas viver a vida.
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