‘A Semente do Fruto Sagrado’ transforma núcleo familiar em microcosmo da violência  

Em “A Semente do Fruto Sagrado”, o que encanta o diretor Mohammad Rasoulof é o estudo dos jogos de poder sob os quais opera a sociedade iraniana. Por meio da dissolução das fronteiras entre o pessoal e o profissional de um de seus quatro personagens principais, Iman (Misagh Zare), o cineasta vai fundo em uma proposta arriscada e corajosa que transforma um núcleo familiar em um microcosmo da opressão política e da dissolução dos direitos humanos.

A princípio, o filme apresenta os quatro personagens principais de forma propositalmente bem estruturada: Iman, um advogado e chefe de família, acaba de ser promovido a um cargo de alto-risco como juiz investigativo. Em casa, ele conversa com a esposa, Najmeh (Soheila Golestani), em tons sussurrados, sobre a mudança profissional e os benefícios e perigos que a acompanham.

É apenas um pouco mais tarde que conhecemos as duas filhas do casal, Rezvan (Mahsa Rostami), uma jovem de 21 anos que já está na faculdade, e a enérgica Sana (Setareh Maleki), uma adolescente impetuosca e bem-humorada. Enquanto as duas recebem a notícia, elas questionam nunca terem sido verdadeiramente informadas sobre a natureza arriscada e perigosa do trabalho do pai, e são informadas que cada passo em falso delas pode ser arriscado para a família. Mas suas lamentações são tratadas com certa displicência e meros ímpetos da juventude: o que importa é que, com a nova casa, elas não precisarão mais que dividir um quarto.

Apresentar a família como uma hierarquia rígida em que cada membro opera unicamente suas funções determinadas é algo que serve ao desenvolvimento do filme, pois é o rompimento dessas linhas, tanto no âmbito familiar quanto na vida pública, que transforma todas as relações e faz de “A Semente do Fruto Sagrado” uma pintura amedrontadora da realidade.

A promoção de Iman, que no novo cargo precisa assinar diariamente centenas de execuções a penas de morte para detratores do governo, coincide com a eclosão do movimento Mulher, Vida, Liberdade, que ganhou as ruas do Irã em 2022 durante os protestos após a morte de Mahsa Amini.

Aos 22 anos, a jovem foi presa por seu hijab não atender aos padrões obrigatórios do governo, e morreu sob a custódia da polícia moral iraniana. Enquanto os órgãos públicos alegavam que ela sofreu uma parada cardíaca, provas mostravam que Amini foi espancada e agredida com um pedaço de pau.

A interseção entre o real e o fictício é abordada de forma muito inventiva por Rasoulof, que usa cenas reais dos confrontos entre protestantes e órgãos de repressão, retiradas das redes sociais, para a imensa maioria das cenas externas na primeira parte do filme.

Ao mesmo tempo, o realizador também garante que o questionamento e a violência entrem na casa da família: o questionamento porque uma das amigas de Rezvan, Sadaf (Niousha Akhshi), é aberta sobre suas ideias progressistas e acaba gravemente ferida durante uma manifestação; Najmeh, que não gosta da influência da amiga sobre as filhas, ajuda a jovem mesmo assim, numa demonstração da complexidade desta teia feminina de proteção. A violência porque Iman recebe uma arma para proteção pessoal, que precisa levar para casa todos os dias, e de onde o objeto desaparece misteriosamente.

É a partir deste cenário que vai se desenhando um microcosmo dentro daquela residência. O despertar das ideias nas duas irmãs, politicamente inflamadas e curiosas, vai na contramão dos sentimentos do pai, cujas ressalvas iniciais com o novo cargo vão dando lugar a uma cumplicidade com o regime totalitário que nem se disfarça, enquanto a mãe, resguardada e obediente, se vê no centro de um dilema tentando proteger algo que talvez não exista mais. Desconfiança, paranoia e o rompimento da ordem tomam o lugar do que era antes aquela hierarquia tão bem preservada.

Assim, nos vemos diante de um filme que usa o microcosmo familiar para tratar de quão inconciliáveis são as funções de protetor e executor, vigilante e elo paternal. Em uma escala maior, podemos dizer que a obra reflete em mais de um sentido o quanto as figuras tradicionais de poder (neste caso, o Estado, o pai, as armas) falham em sua obrigação de proteger, e repetem erros grosseiros em busca de um suposto bem maior que nunca chega. Rousolof não se acanha diante da necessidade de ser cruel para escancarar o que isso significa, o que significa romper, nos momentos finais, com a direção mais naturalista que vinha abordando até então.

Mas em meio aos conflitos de geração e gênero, surge uma rede de empatia de mulheres lutando para serem ouvidas, e um diretor que, perseguido, convida seu público a se unir na coragem de ousar transgredir. No fim das contas, fazer cinema é isso.


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