Não é uma tarefa difícil abrir o Youtube e encontrar algumas dezenas de cortes de podcasts com trabalhadores da comédia falando sobre a suposta dificuldade de se fazer graça nos dias de hoje. A galera atribui uma certa censura da sociedade e até governamental quando, pra mim, é só resposta do público. Uma piada contada pra um espelho não é nada. A arte cômica só existe quando ela é feita pra alguém que vai reagir seja com uma boa gargalhada ou uma tomatada na cabeça do palhaço em cima do palco. É do jogo, o famoso "fala o que quer, ouve o que não quer". O que acho ainda mais ignorante é acreditar que reações exageradas por parte do público é algo recente. "Hoje em dia não dá pra falar nada, muito mimimi nos tempos de hoje, o mundo está chato" e outras bobajadas que são ditas repetidas vezes é sinal de que a pessoa não conhece a história da comédia. Para sorte de vocês, caros leitores desse artigo, eu existo e estou aqui para aprimorar ainda mais o seu vasto conhecimento desnecessário em audiovisual.
Trabalhar com comédia nunca é fácil, principalmente em períodos comemorativos. A mão até coça para escrever alguma piada sobre aquela data, muito difícil se controlar de não contar uma mínima mentira num primeiro de Abril ou ser solteiro e não falar nenhuma palhaçadinha no dia dos namorados para que seus amigos ou sua audiência ache engraçado um humor autodepreciativo que só você sabe o quanto já chorou no banho sozinho pensando sobre isso até virar piada pra mesa do bar. O problema é que essa inquietude também acontece em datas sagradas e logo o humor vira o maior pecador da Terra ao soltar um riso em meio as reflexões cristãs dadas como intocáveis.
Um certo grupo de humor britânico quis mexer nesse vespeiro.
Monty Python, donos da popularização do humor sem sentido apresentado no seu show de esquetes, resolveu dar risada dessa fé dada como certeza absoluta por parte da sociedade. Monty Python rindo da igreja não era bem uma novidade, já que o grupo costumava contar piadas sobre isso em "Monty Python Flying Circus" transmitido pela BBC. Na esquete "Religiões Excêntricas Ltda." eles apresentam uma religião diferente onde é possível ganhar brindes ao se inscrever. Enquanto na cena "Existe?", o membro do grupo John Clesse apresentava um programa de debate como o tema "Existe vida após a morte?', o problema é que o grupo de debatedores era formado apenas por pessoas mortas que, por razões óbvias, preferiram não se manifestar.
Porém foi no cinema que a maior e melhor piada religiosa do grupo apareceu e ainda trouxe muita história pra contar. "A Vida de Brian", uma quase paródia da Bíblia sobre Brian um rapaz que teve a sorte (ou azar) de nascer vizinho da manjedoura de Jesus Cristo. Logo, por um descuido da sociedade, foi confundido com o criador e teve que arcar com as consequências de andar nas ruas sendo visto como o todo poderoso.O filme é de 1979 e já teve polêmica logo antes do início das filmagens com a produtora largando o projeto com receio da repercussão do roteiro. O que salvou o filme foi George Harrison, o ex beatle menos citado em qualquer homenagem aos Beatles mas que tem quase todo o mérito por fazer "A Vida de Brian" acontecer. Foi ele quem financiou parte da produção por ser um grande fã de Monty Python, chegou até a fazer uma figuração no filme.
Tem quem acredite que essa seja a melhor comédia de todos os tempos, o filme foi sucesso de bilheteria e é cultuado até hoje pelos amantes de humor e de cinema mas não foi uma unanimidade desde aquela época, os rapazes de Monty Python tiveram grandes dores de cabeça com a revolta dos fanáticos religiosos que não gostaram de ver piadas sobre apedrejamento e crucificação na telona do cinema. Chegou ao absurdo nível do filme ter sua exibição totalmente proibida em determinados países.
O que considero ainda mais impressionante é que outras partes da sociedade não tenham feito tanto barulho quanto a fatia religiosa mundial, já que o filme acaba tocando em outros temas também sensíveis, como a discussão de gênero, provando sua atemporalidade, coisa rara de se ver em comédia que costuma ser tão momentânea.
O auge da treta em torno dos Pythons foi quando um bispo quis assumir um protagonismo em cima da raiva dos religiosos e fez diversas críticas públicas sobre o filme, até resolveu chamar os comediantes para um debate ao vivo na televisão. E eles foram!Michael Palin e John Clesse aceitaram participar dessa discussão contra o bispo que impulsionava todo aquele báfafá midiático junto com outro ativista cristão num esquema bem Casos de Família. O programa durou quase uma hora e se tivesse rolado no Brasil, o sonoplasta sairia com o dedo cheio de calo de tanto apertar os botões de "jesus, vixi, pare, rapaz" entre outros sons característicos dos programas de televisão por aqui.
Um grande momento é quando o bispo tenta considerar que o cristianismo é uma crença que não deve ser alvo de piadas por já ter inspirado tantos outros artistas e tantas manifestações pelo mundo. Ao elencar esses feitos que se inspiraram na religiosidade, o bispo cita as artes plásticas, algumas construções, composições musicais...E logo é interrompido pelo John Clesse que continua falando o que ele tinha esquecido de citar: "A Alemanha nazista, a inquisição..." logo em seguida a platéia ri e aplaude a intervenção do comediante.
O debate foi tão histórico que rendeu um livro "Monty Python: Case Against" que conta em detalhes os bastidores desse surreal momento televisivo.Algo parecido já aconteceu aqui no Brasil quando o grupo de humor "Casseta e Planeta", dado por muitos como o Monty Python brasileiro, lançou um disco chamado "Preto com Buraco no Meio" e isso levantou questões sobre racismo que fizeram com que o grupo participasse de um debate. Dessa vez, não televisonado, mas em universidades pelo país para explicar que o título era uma referência ao formato do disco de vinil, uma brincadeira para os que perguntariam nas lojas "que disco é esse?" e a esperança era que o vendedor respondesse: "é um preto com buraco no meio".
Curioso que toda essa realidade já foi apenas uma piada. Quando o programa “TV Pirata” da Rede Globo criou o quadro “Piada em Debate” onde convocava diversos ativistas para interpretarem se uma piada de salão era aceitável ou não. Uma esquete que seria facilmente reproduzida em algum podcast ou programa de televisão vespertino nos dias de hoje.
https://www.youtube.com/watch?v=aF3aPUeaAkY
Ainda sobre a treta do grupo inglês, a verdade é que ninguém se lembra do nome do bispo e dos ativistas cristãos que chegaram até a promover manifestações nas ruas contra o filme, já o Monty Python segue sendo cultuado como maior grupo de comédia do mundo tanto é que acabaram de lançar uma linha de camisetas sobre o filme e "Em Busca do Cálice Sagrado", outro clássico cinematográfico dos comediantes parodiando a lenda do Rei Arthur, completou 50 anos e vai ser relançado nos cinemas pelo mundo.
No encerramento das Olimpíadas de 2012, Terry Jones apareceu cantando a música tema de "A Vida de Brian" no meio de um estádio lotado que ecoava os assovios do refrão de "Always Look On The Bright Side Of Life", música que é cantada na cena final onde todos estão crucificados.No final das contas, é isso que falta tanto para os comediantes que insistem em se queixar das reações da audiência quanto para o público que não se permite rir de si mesmo, "olhar para o lado bom da vida". É preciso aprender e revisitar os grandes mestres porque dificilmente eles estarão errados.
E olha...Um BEIJÃO pra você!
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