The Last of Us e o suposto episódio FILLER

Spoilers

Preciso fazer um desabafo. Há algum tempo, tenho me incomodado bastante com a recepção de parte do público a alguns tipos bem específicos de episódios de séries. Sabe quando vem aquele episódio mais parado, mais voltado a diálogos e que prepara o caminho para o desenrolar da história? Ou mesmo quando tal episódio se dedica a sair por uma tangente e explorar ideias, personagens ou recortes temporais que não estão obviamente conectados à trama principal? Pois é, esse seria — segundo a galera na internet — o clássico episódio FILLER, pensado apenas pra preencher lacunas, inchar uma temporada ou ganhar tempo até que a trama se movimente de novo.

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De fato, episódios fillers existem há muito tempo, surgindo principalmente quando séries de TV lançavam um volume muito maior de capítulos por ano e precisavam contar com alguns trechos menos ambiciosos para preencher a cota de 24 episódios por temporada, por exemplo. E é claro que ficou mais fácil identificar um episódio filler quando as narrativas televisivas fizeram a transição para um formato cada vez mais serializado, mais contínuo do que o estilo procedural e desconectado de antes (algo que ocorreu dos anos 1990 aos anos 2000).

Meu problema não é exatamente com o filler em si, mas sim com a tendência atual de chamar de filler tudo aquilo que não prende a atenção imediatamente, que não gera engajamento e memes na internet, que não é classificado como um spoiler imperdível ou que não muda drasticamente a história sendo contada. Hoje em dia, no discurso sobre audiovisual nas redes sociais, todo episódio precisa trazer o mesmo nível de intensidade de um season finale, ou pelo menos simular que estamos acompanhando, a todo momento, uma parte crucial da trama.

Digo tudo isso justamente ao observar a reação de muita gente ao terceiro episódio da segunda temporada de The Last of Us, que realmente freia o momentum da série para sentir os eventos traumáticos do episódio anterior… e que foi quase automaticamente rotulado como filler por essa parcela da opinião que considera sonolenta qualquer desaceleração momentânea do ritmo de uma temporada, mesmo quando essa pausa é completamente justificável.

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Afinal, depois da (SPOILERS) dilacerante morte de Joel, faz muito sentido que todo o núcleo principal da série tome um tempo para digerir, lamentar, planejar e, enfim, seguir em frente… e nesse sentido, vejo a “lentidão” do episódio até como uma forma que a série encontra de confrontar a impulsividade inconsequente da Ellie. Para ela, a única forma de lidar com esse trauma é arrumar a mochila e se lançar numa perseguição violenta irracional — vide a cena com Dina contestando a completa ausência de planejamento da amiga. Justamente por isso, acho crucial que o episódio se recuse a entregar para Ellie o que ela mais deseja: esse imediatismo da ação. O que ela recebe, no lugar disso, é justamente esse respiro forçado, que pretende fazer com que ela pense antes de agir.

E isso funciona para nós também. Ao invés de satisfazer a nossa sede de sangue (que, nesse momento, caminha lado a lado com as intenções da protagonista), o episódio promove uma reflexão bastante necessária ao redor de toda essa empreitada: Será que só a morte de Joel tem peso, nesse momento? Será que vale à pena arriscar a vida de outras 16 pessoas da comunidade para cumprir um objetivo que pode muito bem ser considerado uma indulgência individual? Será que o luto dos outros membros da cidade de Jackson — que perderam vários amigos, parentes e pessoas amadas na batalha contra a horda de infectados — não merece ser contemplado também?

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E há espaço para o argumento contrário, quando Seth (de todas as pessoas, justo o cara homofóbico do primeiro episódio) se coloca ao lado de Ellie e defende que executar os assassinos de Joel serviria a um propósito funcional também, alertando a qualquer futuro invasor que Jackson retribui os atos de crueldade contra si. Jackson resiste, e Jackson revida.

Sem contar que tudo isso ocorre enquanto o roteiro desenvolve os relacionamentos entre esses personagens. Ellie e Dina se aproximam ainda mais, enquanto percebemos que essa jornada de vingança também envolve Dina — uma mudança maravilhosa, em relação ao jogo, já que é Dina quem testemunha o ocorrido, diferente da versão original.

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Enquanto isso, Tommy discute, com Gail (a psicóloga tóxica mais divertida do fim do mundo), se precisa ou não cuidar de Ellie como Joel o fazia… e assume, a princípio, uma posição mais prudente em relação à sua versão no videogame, em mais uma mudança que incomodou uma parcela de fãs, mas que faz sentido com o jeito bastante humanizado como a série tem retratado essas pessoas. Elas não são super-heróis infalíveis, mas sim sujeitos vulneráveis, que pesam as suas decisões com muito mais receio.

Meu ponto é que séries de TV precisam desse tipo de episódio também, tanto quanto aqueles trechos bombásticos que consolidam as várias subtramas e entregam a catarse esperada, nos grandes momentos narrativos. Se gostamos da explosão (literal ou não), é porque chegamos nela através de um caminho de pólvora que, inevitavelmente, passa pelo diálogo, pelo respiro e pelo desenvolvimento sutil também. Se tudo é barulho, NADA é.

Mesmo em The Last of Us, ocorreu algo semelhante na temporada passada, quando outro episódio 3 desviou o foco de Ellie e Joel para nos mostrar um retrato lindo de um relacionamento atravessando várias estações, contando aquela que considero uma das mais belas histórias independentes que já vi na TV. E é claro que teve muita gente que descartou por completo essa preciosidade, clamando que a série não deveria tirar os olhos dos protagonistas da trama. Agindo assim, acabam recusando uma das coisas mais legais que existem nesse universo, que é a sua capacidade existir além dos personagens principais. No jogo, estamos sempre colecionando cartas e bilhetes com fragmentos de experiências humanas totalmente separadas do ponto de vista de Joel e Ellie… e o episódio com Bill e Frank está justamente dando vida a uma dessas cartas.

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Não que o recente episódio 3 — o da segunda temporada — seja igualmente poderoso, mas ele faz o que precisa fazer, servindo como a necessária calma antes da tempestade. Ele não é, para mim, um filler… mas sim um importante passo dentro desses personagens, pensado para que os seus eventuais passos exteriores sejam acompanhados com muito mais envolvimento, da nossa parte. E espero muito que essa galera meio hiperestimulada na internet perceba que também dá para prestar atenção a cenas de diálogos, e não só a cenas de ação, tiro, morte ou destruição. Também é possível aproveitar a jornada, e não só o destino final.

Lá no meu canal, no YouTube, discuto outros aspectos interessantes desse terceiro episódio, caso queiram conferir. ;)

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Comentários 11
Bombando
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carlosnorcia
carlosnorcia
 · 30/04/2025
Pois é, essa conversa toda de que os episódios mais lentos ou reflexivos das séries são fillers tende a ser bem rasa mesmo. Quem fala isso tá deixando de notar não só a importância das mudanças de ritmo e de ênfase pra qualquer história, mas tb aquilo que só funciona com registros mais sutis.
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Papo de Telinha
Papo de Telinha
 · 10/05/2025
A internet criou a geração que precisa de um plot twist por minuto, e se não tiver, já é 'episódio inútil'. Sério, esse texto foi um alívio! Também não aguento mais ver gente chamando tudo de filler só porque não teve tiro, porrada e bomba. E sobre Ellie e Dina… o desenvolvimento de personagem tá sendo TÃO bem feito que me dá até nervoso de ver gente ignorando isso.
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VanessaFreitas0
VanessaFreitas0
 · 1 dia atrás
Gostei muito do texto. Por isso, eu tenho essa impressão também que tudo tem que ser muito rápido ou muitos beats.
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Martinha Santos
Martinha Santos
 · 15/06/2025
Bom
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