Homem com H - Um Olhar Íntimo na Vida de um Artista Único

Em 2015, durante a Mostra Internacional de Cinema, participei de um debate com o cantor Ney Matogrosso, no caso ele estava divulgando um filme que ele participou como ator. No fim do debate, perguntamos se um dia seria lançada uma cinebiografia dele e simplesmente respondeu que só depois que morresse. Quem acompanha a carreira do Ney sabe o quanto ele é uma pessoa reservada, fazia sentido a resposta naquela época. Acho que não há palavras para falar do seu talento descomunal como artista. Dono de um repertório fantástico, uma voz única e uma presença especial e forte no palco, ele construiu uma carreira incrível e reconhecida. Quando foi anunciado que finalmente aconteceria a tal cinebiografia sobre esse grande artista com a direção do Esmir Filho - sempre um cineasta muito interessante - e que o ótimo Jesuíta Barbosa tinha sido escalado para viver o Ney, fiquei bem empolgado. E fico ainda mais feliz que o resultado final seja um filme tão especial como “Homem com H”, um filme que faz jus a visão do biografado como artista e como pessoa, ao mesmo tempo que é muito emocionante.

Acompanhamos toda a trajetória do Ney, de 1949 até 1993, mostrando os seus principais momentos da sua vida. O relacionamento muito tumultuado - com momentos de violência - com o seu pai (Rômulo Braga), enquanto tem a mãe (Hermila Guedes) sempre sendo uma ponte entre eles; a descoberta da sexualidade; o amor ao teatro e como usou a sensualidade como assinatura; a sua entrada no Secos e Molhados; a carreira solo; e a paixão forte, mas turbulenta com o Cazuza (Julio Reis).

Tendo essa pequena sinopse, pode pensar: “Poxa, então temos outro filme wikipédia? Que resume os melhores momentos da vida do biografado?” Sim, em termos de estrutura, não à toa o filme vai mostrando os anos e o local que está se passando. Porém, por mais que tenha essa estrutura, o roteiro muito bem escrito pelo próprio Esmir Filho está preocupado em sintetizar esses momentos para dizer como cada um deles foi importante para a evolução para o protagonista, não apenas para a pessoa, mas também como artista. Além de não soar episódico, que não deixa a experiência repetitiva ou cansativa. O personagem Ney está em busca de uma liberdade e usa o palco como meio de se expressar, ou como o próprio diz se tornar o “bicho” que ele tem na parte de dentro e que aparece quando está no palco. E vamos entendendo de onde vem essa criação desse bicho que vai desde as reprovações duras do pai militar do filho querer ser artista - e a questão envolvendo sua sexualidade - até romances abusivos, vai se tornando coerente e vamos entendendo de onde vem a provocação e a sensualidade das apresentações do protagonista. Além desse arco muito bem desenvolvido pelo roteiro, admiro o quanto ele é objetivo. É comum nesse tipo de biografia ter excesso de personagens e nem todos serem desenvolvidos, mas em “Homem com H” o roteiro já deixa claro quem realmente importa no momento e dando sempre ênfase de como o protagonista vai reagir a cada situação. E tem diálogos afiados e excelentes, principalmente as respostas do Ney quando ele é confrontado por ter essa persona sensual.

Se o Esmir Filho já entrega um roteiro muito bem escrito, o mesmo pode dizer da direção que é muito inspirada. A câmera está sempre com o Ney e compreendendo cada vez mais os seus desejos e como ele está se transformando e formando a persona Ney Matogrosso. O filme tem um ritmo muito agradável e a direção está na medida. Destaques aos momentos de apresentação solo do protagonista, após a saída dos Secos e Molhados, que esse lado selvagem, dramático e muito sensual do protagonista vão ficando mais evidentes no palco. Percebo que o Esmir Filho realmente entendeu o que é o Ney Matogrosso e ele coloca isso em tela. Claro, que isso se deve muito ao ótimo trabalho de fotografia do Azul Serra e da direção de arte do Thales Junqueira, que sempre deixam claros essa atmosfera de paixão e sensualidade evidente. Seja a câmera mais íntima que acompanha o corpo e expressão dos atores, com as luzes dando ênfase às texturas e a direção de arte que fazem com que cada cenário fale do momento emocional e psicológico do protagonista. Como por exemplo, as casas que ele vive. A do momento mais louco é mais caótica enquanto do momento que ele tá mais tranquilo, é uma casa mais harmônica. Todo o trabalho de arte de “Homem com H” merece destaque desde os figurinos muito bem feitos até o trabalho de caracterização excepcional, que realmente nos faz esquecer que estamos vendo o Jesuíta Barbosa, mas o próprio Ney Matogrosso, que teve atenção aos mínimos detalhes do rosto e do corpo do biografado.

E já que mencionei ele, um dos principais pontos que fizeram me deixar encantado por esse filme é o trabalho excepcional do Jesuíta Barbosa. Já acompanho o trabalho dele há anos, desde “Praia do Futuro” e “Tatuagem” e sempre considerei um ator muito talentoso. Dono de uma fisicalidade forte e um olhar muito expressivo, quando ele foi escalado para o papel já pensei que foi uma ótima escolha. Não só ele capta todos os detalhes físicos do Ney - o olhar direto; o jogo de corpo, detalhe como ele movimenta os ombros; o jeito de falar pra dentro - mas ele vai construindo essas características durante a projeção, sem nunca soar uma imitação. É um trabalho tão rico de detalhes que mesmo ele estando em praticamente todos os planos do filme, percebe que a câmera e o público acabam ficando hipnotizados pela entrega e complexidade do trabalho dele. Principalmente os momentos de silêncio, que ele só entrega muitos sentimentos no olhar, porque mesmo o artista sendo esse “bicho” no palco - que ele faz com perfeição - , na vida íntima ele ainda é uma pessoa reservada e que transmite muito pelo jeito de olhar. Considero uma das melhores atuações que vi nesse ano.

Enfim, “Homem com H” já entra na minha lista de melhores do ano. Muito bem atuado e feito com esmero. Acho que mais que uma cinebiografia é uma ode a um dos artistas mais especiais que o Brasil já teve ou vai ter. Espero com ansiedade o próximo trabalho do Esmir Filho e como diz a companheira Isabela Boscov: “Pena quem não acompanha cinema brasileiro, porque perde cada coisa”.

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