Já vivi muita coisa doida no cinema. Mas, curiosamente, as mais doidas não aconteceram dentro da sala — necessariamente.
Trabalhei por dois anos numa distribuidora de filmes. E se tem um universo que mistura paixão, caos e loucura (no melhor dos sentidos), é o da distribuição. Lançar um filme nos cinemas e nas plataformas de streaming é um processo longo, intenso e povoado por pessoas… peculiares. Gente maluca. Maluca por filme, por série, por audiovisual. Maluca tipo eu. Tipo você.
Tudo começa na aquisição do filme. A distribuidora entra no projeto em que fase? Tá pronto? Tá sendo gravado? Ainda é só um roteiro? Quanto antes entra, mais chance de consertar algumas ideias — digamos — excêntricas. Às vezes, a ideia original é incrível. Incrível do tipo que vira um roteiro com dez ideias absurdas por página. Porque sim, filme é arte. Mas também é produto. E produto precisa de público. Difícil lucrar com um filme que ninguém entende, assiste ou sequer consegue pronunciar o nome. A distribuidora tenta ajudar. Muda-se o título, ajusta-se o roteiro, sugere-se cortes. O problema? Nem todo mundo quer ajuda.
Um exemplo? Um filme sobre um time de futebol de várzea chamado Os Invasores. Legal. Mas parece filme de alienígena ou ação classe B. “Ah, mas eles invadem a área do adversário.” Ótimo! Mas e daí? A gente vende título ou legenda explicativa?
Se o filme ainda está em set, dá pra levar a imprensa, fazer stills posadas do elenco (importantes pra caramba pro cartaz), começar a criar burburinho. Mas, por favor: se você quer que seu filme tenha público, aceite as sugestões da distribuidora. Ela não é o inimigo. É só alguém tentando evitar que sua obra-prima passe batida.
Muitos filmes chegam prontos. Vêm de festivais. E aí começa outro tipo de loucura. Nos festivais, muitos filmes ainda não têm distribuição. E é lá que os negócios acontecem. Curiosidade: uma distribuidora não pode inscrever seus filmes em festivais. Isonomia. Se inscreve um e não o outro, começa a guerra. Literalmente. Por isso, a inscrição é tarefa da produtora. Mas, se já houver uma distribuidora no projeto, ela ajuda — ou tenta.
Trabalhar num festival é viver duas semanas entre sessões com elenco, debates, entrevistas e uma agenda que exige estar em dois lugares ao mesmo tempo. Ou no mesmo lugar, mas com dois filmes diferentes. Só com equipe bem treinada e bom humor (e bastante cafeína) isso funciona. Mas quando dá certo, é lindo. Sala cheia, público engajado, e aquela ligação clássica: “O diretor não pode pegar o voo. Ele vai ganhar prêmio.” Alegria que compensa a gastrite.
Depois do festival, vem a estreia comercial. Uma nova fase, igualmente caótica. Programar um filme nas salas exige convencer o exibidor de que vale a pena. Se ele não curtir, ele enfia o filme num horário ingrato: terça-feira, 14h. Público? Só aposentados e desavisados. A distribuidora perde cópia, tempo e, principalmente, paciência.
Aliás, você sabe o que é um DCP? É o arquivo que o cinema usa pra exibir o filme. Não é tipo um MP4 de pendrive. É criptografado, tem que ter chave, exige ingest no projetor e precisa de teste. Uma vez sugeri colocar a vinheta de um patrocinador no começo de um filme. A produtora quase me jogou um troféu na cabeça: “Você sabe o que é abrir um DCP?” Sei. E também sei quanto aquele apoio de mídia ia valer. No fim, ela aceitou. Reclamando, claro. Mas aceitou.
E antes da estreia tem mais: trailer e cartaz. O trailer vende a história. Mas tem que ter cuidado. Já vi musical sem liberação das músicas pro trailer. E aí, como faz? Às vezes o trailer fica melhor que o filme — e tudo bem. Ele precisa te levar até a sala. Só isso.
Cartaz? Eu amo os artísticos, ilustrados, lindos de emoldurar. Mas às vezes temos um ator famoso no elenco, e a arte insiste em escondê-lo. Por quê? Ele é o chamariz! Dá pra fazer dois: um comercial pra exibição, e outro cult, pro Instagram dos cinéfilos.
Essas são só duas das inúmeras peças que antecedem a estreia. Tem envio de trailer, cartaz, material pra exibidor, kits pra influenciador, ações promocionais, cabine de imprensa… até que chega o dia da pré-estreia.
A pré é uma experiência à parte. Começa semanas antes, com decisões sobre local, sala, equipamento, número de convidados, expectativa de elenco, de imprensa, de parente. Vai ter microfone ou o diretor vai agradecer no gogó? Tem backdrop? Tem recepcionista? Tem videowall? Tem cartaz o suficiente pra cobrir o cinema inteiro?
E tem a galera da imprensa, da produção, do elenco. Todos com lugar marcado. Lugar bom, claro. E sempre sobra alguém pra fora. Triste para quem ficou. Glorioso para quem organizou. Melhor gente do lado de fora do que cadeira vazia.
E sim, tem os cinéfilos infiltrados. Aqueles que passam pelo cinema, veem uma aglomeração e decidem que aquilo é pra eles. Se tem pipoquinha e refrigerante grátis, então… Mas se a sala está cheia, amigo, não dá. Tenta no próximo.
Passou a pré, chegou a estreia. Mas o trabalho não acabou. Agora começa o desafio do boca a boca. A famosa “dobra”: manter o filme em cartaz. O primeiro fim de semana é tudo. Se flopar, acabou. Todo aquele trabalho? Em vão.
Já vivi muita coisa graças ao cinema. Já tomei bronca de produtora, de diretora e de uma atriz porque não tinha um ring light. Já distribuí adesivo, panfleto, carreguei tripé de banner. Já almocei com quem eu nem sonhava em conhecer — e bebi na Praça Nelson Mandela com uma artista que eu admirava.
Foram dois anos intensos, apaixonantes e insanos. Porque sim: as experiências mais doidas do cinema existem. E quase sempre acontecem fora da tela.
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