Lá em 2020 eu escrevi um texto para o finado site nebulla.co, falando sobre os porquês de eu ter optado por me afastar de tudo relacionado à Harry Potter. Cinco anos atrás, antes de tudo que o mundo passou desde então, eu tinha uma visão muito mais leve sobre quem decidia continuar consumindo Harry Potter e, ainda assim, se dizia amigo e apoiador de pessoas trans. Hoje a minha visão é diferente.
Caso você não saiba, além de toda a retórica transfóbica e violenta que a J.K. Rowlings vem cometendo e fomentando ao longo dos anos, ela agora também financia através da sua organização J.K. Rowling Women’s Fund, a perseguição de pessoas trans (em especial mulheres trans), apenas por existirem dentro da nossa sociedade. Isso tudo depois de ter celebrado a vitória do Equality Act na Inglaterra — que limita a classificação de mulheres apenas como aqueles indivíduos que tenham nascido com o “sexo feminino”. Desde 2020 Rowling atacou crianças trans, esportistas cis, financiou grupo de ódio e muito mais.
Hoje eu acredito que se você se diz amigo ou aliado de pessoas trans não faz nenhum sentido você interagir com a franquia de Harry Potter dentro da sua esfera pessoal. Assistir um filme, comprar uma camiseta ou algo assim significa que você está financiando o ataque à pessoas trans. Eu sei que os seus 50 reais vão pingar como centavos na conta de Rowling, mas acho que é mais uma questão de apoio incondicional ao direito à vida.
Vou deixar aqui embaixo o texto que eu escrevi há cinco anos mas que, infelizmente, ainda faz muito sentido. Eu fiz algumas pequenas alterações nele, como retirar parágrafos ou adaptar a escrita, para ajustá-lo à minha visão do assunto de 2025.
Este artigo foi originalmente publicado em julho 16, 2020 no site nebulla.co.
A transfobia de JK Rowling rompeu a bolha de muitas pessoas que viam em Harry Potter um lugar de tranquilidade. A literatura, os quadrinhos, filmes, séries e videogames são lugar de refúgio para muitos de nós. Quando precisamos de um canto quentinho para encontrarmos um momento de paz frente ao caos do mundo, corremos para as histórias que nos proporcionam essa calmaria interna. Harry Potter é isso para muitas pessoas, e foi isso para mim também. Em especial as últimas duas adaptações, que por muitos anos me ajudaram a desligar da minha depressão e me conectar com a história de vitória frente à intolerância.
Mas esse não é mais o lugar que Harry Potter ocupa dentro de mim.
Sobre separar autor e obra
Eu não consigo separar autor de obra. Não porque eu não quero, mas porque eu não acredito que seja possível. Como autora, eu sei que é impossível escrever uma história que seja livre do meu ponto de vista – mesmo que eu esteja escrevendo ela em terceira pessoa, e que o personagem seja o meu extremo oposto.
Porque o personagem não é uma pessoa real. Os outros personagens que interagem com ele também não são reais. Quem toma as decisões não só narrativas e de rumo da história, mas aquelas que dizem respeito às ações do personagem e daqueles à sua volta, sou eu. A autora. Todas as frases, todas as letras e toda a narrativa que eu escrevo vem de algum lugar dentro de mim. E por isso, mesmo que sem a intenção, é impossível dizer que eu não estou dentro daquilo que escrevo.
Quando escrevemos, procuramos criar uma variedade de personalidades que seja vasta o suficiente para não repetirmos um mesmo personagem apenas com o nome diferente. Mas, no fim, o que o leitor lê, a ação que o personagem faz, veio do autor do livro/filme/jogo/hq.
Entender isso não é desvalorizar os diferentes espectros de representação e importância que as obras possuem para diferentes leitores. Também não é negar o efeito que a obra possui dentro de cada pessoa, o que ela alimenta e o bem que ela faz. De maneira nenhuma.
É só quebrar o mito de que as visões políticas e pessoais de um autor não estão necessariamente dentro da sua obra de ficção.
Analisar histórias e autores de outras épocas sob as lentes da nossa época pode ser difícil e, vamos ser sinceros, muito polêmico. Nem todo mundo quer aceitar que sim, não interessa que a obra tenha sido escrita em 1777 e “naquela época machismo/racismo/xenofobia/lgbtfobia nem era um conceito” – porque mesmo que o conceito dessas coisas como as conhecemos hoje não existissem, elas existem hoje.
Quando falamos sobre essa questão de separar ou não autor de obra dentro da cultura pop, acabamos sempre caindo em dois autores muito importantes para a fantasia e a ficção científica: Tolkien e Lovecraft. O primeiro sempre disse que Senhor dos Anéis em nada tinha a ver com a sua experiência com a Segunda Guerra, e isso por si só é uma discussão imensa dentro do fandom. O outro era considerado racista até para a sua época, mas é lido e venerado até hoje. Os dois foram ótimos contadores de história, mas ainda assim deixaram transparecer nas suas obras, mesmo que não intencionalmente, os preconceitos que carregavam dentro de si na época.
Acho difícil que Lovecraft não tenha tido a intenção de ser racista ao escrever, é algo muito perceptível até aos olhos dos que não procuram esse tipo de coisa. Tolkien, no entanto, deixou transparecer através de símbolo racistas que ajudam a sustentar estereótipos que são consumidos até hoje (tanto aqui, quanto na Europa), sobre a “ameaça que vem do leste”. Ele até podia não estar fazendo isso conscientemente, mas esse era o imaginário que circulava na Europa na época, era isso que ele consumia e foi isso que ele colocou no papel. Então sim, eram outras épocas, mas isso não quer dizer que era ok e que a gente não pode questionar e falar sobre isso em 2020.
Mas por que eu estou falando de Tolkien e Lovecraft quando quero falar, na verdade, sobre JK Rowling e a triste revelação de que ela é sim transfóbica? Porque existe uma diferença gigante entre esses três autores – um deles ainda está vivo.
Hogwarts e papéis de gênero.
Uma coisa que sempre me incomodou nos livros de Harry Potter foi a maneira com que Hermione era retratada e tratada pelos seus colegas. Como uma adolescente que também sempre foi vista como “certinha demais e que não sabe se divertir”, eu me enxergava em Hermione o tempo todo.
Passei anos sem pensar muito sobre isso até aquele primeiro tweet transfóbico de Rowling, quando comecei a repensar a minha relação com os livros e os filmes – e a representação feminina dentro deles.
Mas melhor do que eu poderia fazer, Aislin Walsh, no The Mary Sue, resumiu bem em seu texto JK Rowling’s Awful Gender Politics Should Be No Surprise to Harry Potter Fans:
Papéis de gênero são tão firmemente delimitados no mundo de Harry Potter que bruxas tão poderosas como Ginny e Hermione, quando vão à loja de truques dos Weasley, só poderiam estar interessadas em poções do amor. A Ordem da Fênix possui apenas três mulheres, e elas nunca são vistas tomando decisões, com Molly Weasley sendo representada como um pouco mais do que uma mãe adotiva.
A única mulher que possui uma posição política dentro do mundo bruxo é a Umbridge, que tem cara de sapo, só usa rosa, ama gatos, é sedenta por poder e controladora. Existe um número infinito de outros exemplos que eu poderia trazer de cada um dos livros, mas também existem duas personagens cuja justaposição diz muito sobre como Rowling vê o lugar da mulher tanto no mundo bruxo, como no mundo trouxa.
Fluer Delaceur, a linda competidora francesa do torneio tribruxo, foi a única bruxa selecionada para a competição. Mas ela era de uma escola só para garotas (pelo menos nos filmes) sem nenhum competidor masculino. Enquanto se prepara para casar com Bill Weasley, ela é transformada numa vazia Noiva-Godzilla e é coletivamente odiada pelo clã Weasley por seu ar e sua vaidade digna de divas. Ao final da série, ela foi reduzida à imagem perfeita do que você esperaria de uma dama: uma dona de casa sorridente e dócil, que não desafia a masculinidade predominante de seu marido.
Do outro lado do espectro, estava a universalmente odiada Bellatrix Lestrange. Interpretada maravilhosamente pela sempre deliciosa Helena Bonham Carter, ela é a única personagem que exibe uma gota de sexualidade descontrolada. Por isso, e pela sua obsessiva devoção à Valdemort, ela é representada como pouco mais do que uma criminosa louca.
A suspeita de que esses dois tiveram uma relação sexual foi confirmada em Harry Potter e A Criança Amaldiçoada, onde, obviamente, o produto desse encontro é considerado uma abominação. A dedicação de Lestrange ao mal e o seu fim pelas mãos da figura materna mais proeminente da série, Molly Weasley, é uma lição sobre os perigos do poder feminino e da sexualidade incontrolada.
O texto fala ainda sobre a questão do papel masculino na série e é, de maneira geral, uma leitura interessante sobre essa interpretação. Eu definitivamente indico a leitura completa dele.
JK Rowling é TERF e a gente precisa aceitar isso.
Há mais ou menos um ano atrás, JK Rowling jogou no mundo o primeiro sinal de que poderia ser transfóbica. Por ela sempre ter um histórico de lutar contra preconceitos, mesmo que às vezes parecesse que fazia isso apenas pelo status, muita gente deu o benefício da dúvida. Ela é de uma outra geração, talvez não fosse tão bem informada assim, etc.
Mas há algumas semanas, depois de um deslize no twitter, JK escreveu um texto em que, além de jogar muitas mentiras sobre o processo que pessoas trans precisam passar para terem o seu gênero reconhecido por lei no Reino Unido, entre outras informações absurdas e incorretas sobre pessoas trans e casos criminais, ela se identificou como uma pessoa que ativamente luta contra os direitos de pessoas trans. Ela pode continuar dizendo que não é transfóbica, mas ela escreveu um artigo inteiro sobre como ela é transfóbica e tem orgulho disso. Só é preciso saber ler e interpretar texto para entender que é isso que aquele manifesto quer dizer.
Tem-se falado muito sobre a “cultura do cancelamento”, e são pessoas brancas, heterossexuais, cis e poderosas como JK Rowling que ganham com o uso desse termo da maneira como ele é utilizado hoje. Ela inclusive assinou uma carta, ao lado de outros autores e professores que foram acusados de assédio, sobre como tudo isso foi longe demais.
Eu não sou a favor de linchamento virtual, e é preciso entender que do outro lado da tela do computador existe uma pessoa que respira, pensa e vive. Mas também é preciso pensar nas vítimas das ações que levaram ao ato de “cancelamento”. E, principalmente, precisa se levar em consideração o que a pessoa que está sendo cancelada fez, porque ele fez e se continua fazendo.
E é aqui que entra a principal diferença entre Tolkien, Lovecraft e JK Rowling. Os dois primeiros estão mortos e cabe a nós, leitores, interpretarmos e lidarmos com as obras que eles deixaram. Asimov possui pouquíssimas mulheres em suas obras e sabe-se que ele lutou ativamente enquanto esteve vivo para evitar que mulheres e outras minorias ganhassem espaço dentro da ficção científica. Mas agora ele também está morto e cabe a nós lidarmos com isso e com o que fazemos com as suas obras.
Mas JK não só está viva, ela está ativamente lutando contra o direito de uma parcela da população. Ela é contra o direito delas de SER.
JK é a autora dos livros que remodelaram não só o mercado literário, mas também o cinematográfico. Antes de Harry Potter, os fãs infanto-juvenis de fantasia e ficção passaram uma década esquecidos. Até que todos os estúdios e todas as editoras queriam o seu próprio Harry Potter. O poder e a influência que isso dá a alguém é quase imensurável.
Então quando ela tweeta para os seus mais de 14 milhões de seguidores que mulheres trans não são mulheres, apoia abertamente instituições transfóbicas e inviabiliza a existência de muitas pessoas só porque elas não cabem no quadrado preconceituoso que ela criou e que ela acredita como a única verdade… Sim, ela é perigosíssima.
Ela não só apoia financeiramente o plano de extermínio de uma parcela da população, ela destila um ódio que para muitos passa despercebido por debaixo da aura de “mulher branca feminista que não quer mal a ninguém”, mas que acha que sabe de tudo e tem certeza de tudo – mesmo aquilo que a ciência prova o contrário.
É difícil não escrever essas palavras cerrando os dentes de raiva, porque o que JK Rowling está fazendo não é um desfavor, é criminoso. É ativamente alimentar um sistema preconceituoso que vai custar a vida e a liberdade de milhares de pessoas, que vai sustentar a manutenção de uma sociedade que só é capaz de ver as pessoas através das lentes de seu gênero designado ao nascer. E isso vai, invariavelmente, criar uma sociedade cada vez mais cheia de ódio e intolerância – tudo aquilo que ela dizia lutar contra em Harry Potter.
A minha decisão
Eu não tomo essa decisão de maneira leve, porque Harry Potter teve e tem uma importância grande para mim. E foi também um elo entre eu a minha irmã. Foi também através de Harry Potter que eu lidei com o luto pela morte uma das minhas avós. Eu li os livros, assisti aos filmes e inclusive visitei os parques em Orlando.
Mas saber que eu estou financiando, mesmo que os meus poucos dinheiros sejam pequenos demais para a imensa fortuna de JK Rowling, uma máquina que destila ódio e coloca em risco a vida de tantas outras pessoas, é onde eu traço o meu limite.
É difícil demais se manter coerente em um mundo tão complexo como o nosso. Apesar do meu posicionamento em relação a JK e aos autores e diretores e músicos que eu cortei do meu consumo, eu ainda não consigo me livrar totalmente de outras formas com que o sistema capitalista e preconceituoso oprime outras pessoas, outras mulheres. Mas, para mim, é um passo de cada vez.
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