
//Anacrônico//: que não é próprio da época em questão.
Levando em conta apenas o início de The Ugly Stepsister, o primeiro filme da diretora sueca Emilie Blichfeldt (que tentaremos analisar a seguir), poderia defini-lo sob o conceito do estranho e do desconhecido em um determinado tempo e espaço. Porém, como em toda boa história, ou pelo menos em toda grande reversão de uma história já conhecida, o sentido de anacronismo deixa de ser o mais importante, transformando-se em parte de uma mensagem e um sinal de alerta para as gerações futuras. Estamos diante do que seria a versão da história que a Disney nunca ousaria sequer propor como rascunho de roteiro.
Nos primeiros segundos deste distorcido drama de época (com traços de estudo de personagem), enquanto se ouve com certa suavidade os sintetizadores de John Erik Kaada (parecidos com o estilo de Jean-Michel Jarre), nos é contada em paralelo a fantasia idealizada de uma jovem chamada Elvira, que se encontra completamente afastada da realidade. Digamos que ela está... em pleno processo de alienação. Este sentimento de extrema e constante desconfiança em relação a si mesma irá levá-la por um caminho sangrento, onde a decomposição da carne, de sua carne, será uma analogia da aniquilação e autodestruição do ser humano nos ambientes mais tóxicos e repulsivos.
Sim, grande parte deste compêndio parece ter sido retirada de um resumo que qualquer mortal poderia ter feito tranquilamente de A Substância, o body horror de sucesso que veio das mãos de uma francesa para destruir todos os estereótipos, aniquilar moralmente uma parte do ideal hollywoodiano e, além disso, estabelecer um novo cânone. Mas não. Agora, neste 2025, a decomposição e a carne putrefata chegam até nós vindas das terras escandinavas, conhecidas por seu folclore selvagem e animalesco. Neste caso, a ambivalência narrativa pode ser mais confusa do que na sátira bestial de Fargeat: é difícil distinguir o horror extremo da realidade e, embora Blichfeldt aplique organicamente uma ampla gama de recursos estilísticos para avançar a narrativa com dinamismo e frescor, a experiência acaba parecendo um pouco incompleta.

Onde está o conflito e por que Elvira se submete a uma transformação forçada? Embora a encenação à la Yorgos Lanthimos deixe claro que estamos diante de uma anomalia de um filme de época, a desculpa para narrá-la dessa maneira tão “anacrônica” se justifica pelo simples fato de que a diretora pretende distorcer os contos da Disney que reproduzíamos em VHS, nos fazendo confrontar uma realidade latente nos dias de hoje: os contos de fadas nunca existiram e nunca existirão. Diante desse determinismo convincente proposto pela sueca, formam-se duas rupturas bastante interessantes em sua narrativa. Como elemento mais visível de todos, está a deformação absoluta do arquétipo da história “baseada ou inspirada em”, algo que vem sendo testado desde tempos imemoriais (embora às vezes se pense o contrário).
Mas existe apenas uma versão de Cinderela? Se pensarmos em termos populistas, todos ficamos com a imagem de Cinderela, a abóbora, a fada madrinha, o sapato que calça perfeitamente... As histórias e a forma como são contadas acabam degradando o contexto, dependendo de quem convém. A Disney já fez isso há algumas décadas com O Rei Leão (baseando-se livremente na lendária figura de Amleth, protagonista do grande e subestimado O Homem do Norte, de Robert Eggers) e, mais atrás no tempo, quarenta e quatro anos para ser exato, iniciou gradualmente esse caminho de reimaginações idealistas com o lançamento de Cinderela. Quem nos diz? Talvez estejamos diante do que sempre deveria ter sido o cânone, e não o contrário.

O tão almejado bilhete para a ascensão social, o desespero por querer “ser mais” e a falsa ideia do modelo de beleza padronizado nos levam pela mão enquanto espiamos Elvira colocando grotescamente o dedo na ferida, aprofundando-se em um círculo que parece não ter fim. Sua esperança de ser alguém, tal como ela se projeta nas imagens mentais depois de ler poemas característicos da época, traça uma linha semelhante à de Jean-Baptiste Grenouille, personagem inesquecível interpretado por um jovem Ben Whishaw em Perfume: A história de um Assassino: a obsessão corrói cada um deles com um senso insuportável e doentio de psicopatia com o qual, ironicamente, é fácil se perder diante de tal encanto distorcido do ser.
Elvira não é mais do que o fiel reflexo de uma época, mas também é o espelho da atualidade. Uma época em que muitas mulheres, em vez de colocarem o espartilho e deixarem que lhes partam o nariz com um martelo, se enchem de filtros e de botox como se fosse normal. Em que muitos homens, em vez de “comprar” jovens virgens com seu status social, compram assinaturas no OnlyFans. Os mecanismos e métodos podem ser diferentes, mas o resultado é o mesmo. Será que as coisas mudaram, ou apenas nossa percepção delas?
Publicado em 9 DE JUNHO DE 2025, 21hs56 | UTC-GMT -3
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