Pecadores: o medo de “viver para sempre”

Muitos críticos se concentram nas metáforas políticas em Pecadores, mas acredito que essa perspectiva ignora a essência do filme. Pecadores usa vampiros como pano de fundo narrativo principal, e como seres com expectativa de vida de milhares de anos, a política humana passageira não impacta profundamente sua existência. Em outras palavras: os vampiros não se preocupam com questões políticas humanas. Quando encontram forças humanas que não gostam, podem simplesmente dormir profundamente e acordar em um novo mundo. Em Pecadores, o diretor Ryan Coogler reconhece essa realidade. Ele abandona a tradicional configuração de “vampiros versus forças religiosas” e cria as fraquezas dos vampiros por meio de elementos orgânicos — ervas, alho e madeira —, com o objetivo de retornar para a interpretação que os espectadores têm dos vampiros a um nível biológico, ao mesmo tempo em que incorpora elementos místicos para demonstrar o medo da humanidade em relação a esses seres imortais.

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Na última década, a prevalência de temas vampíricos em romances fez com que muitos leitores se esquecessem de quão aterrorizantes os vampiros são enquanto espécie. Nesses romances, eles invariavelmente aparecem como seres irresistíveis, com beleza sobrenatural, status nobre, maneiras elegantes e riqueza ilimitada. As histórias seguem um padrão previsível: após se apaixonar por uma humana, o protagonista vampiro se depara com três escolhas cruciais: continuar bebendo sangue humano, trair seu clã ou transformar seu interesse amoroso em um vampiro. Embora essa fórmula crie tensão dramática, falta horror. Da perspectiva dos vampiros, os humanos são os personagens aterrorizantes: eles se movem livremente à luz do dia, empunham armas para matar vampiros e podem facilmente se apoderar de suas riquezas. Os humanos não enfrentam consequências por caçar vampiros simplesmente porque os vampiros são supostamente malignos.

Se existissem vampiros no século XXI, eles se tornariam os seres mais explorados da sociedade. Governos inventariam maneiras de taxar suas riquezas, empresas farmacêuticas os aprisionariam para fazer pesquisas sobre câncer e extremistas religiosos os executariam em segredo. Até mesmo o submundo do crime os rejeitaria, com novos membros de gangues provando seu valor caçando vampiros. O século XXI simplesmente não é adequado para a sobrevivência dos vampiros.

Como continuar criando histórias de vampiros aterrorizantes de verdade? Enquanto Nosferatu, lançado no ano passado, recapturou o horror por meio de elementos audiovisuais, Pecadores (2025) incita o público a examinar os vampiros por meio de uma nova perspectiva narrativa.

Pecadores apresenta uma história direta que dura apenas 24 horas: irmãos gêmeos que acumularam riqueza por meio do crime em uma cidade grande e buscam redenção abrindo um bar em sua cidade natal. Naquela mesma noite, o cantor do bar deles, de alguma forma, chama a atenção de um grupo de vampiros.

Você pode se perguntar: “Por que cantar atrairia vampiros?”.

Coogler aborda essa questão por meio da narração: certas vozes humanas possuem o poder de transcender o tempo e o espaço, atraindo seres que não pertencem ao nosso mundo. Para os humanos, os vampiros são esses seres. Embora essa explicação pareça razoável à primeira vista, logo dá lugar a uma pergunta mais profunda: por que especificamente o canto humano? É aí que os verdadeiros mistérios da história começam a ser desvendados.

Pecadores apresenta muitos personagens humanos presos às suas limitações. O primeiro é Sammie, o cantor cuja voz atrai misteriosamente os vampiros. Dotado de um talento musical extraordinário, ele enfrenta um dilema: ama blues, mas seu pai, um pastor, quer que ele componha hinos. Embora ame profundamente o pai, sua paixão o leva a bares, lugares que o pai condena como pecaminosos. A presença de Sammie não têm nada a ver com álcool, mas seu pai talvez nunca entenda isso, pois não entende nada de blues. Embora Sammie pudesse seguir o caminho do pai no ministério, ele sabe que nunca conseguiria igualar sua devoção, pois não conhece a fé da mesma forma.

A compreensão transcende o mero conhecimento intelectual; requer uma ressonância espiritual mais profunda. O primeiro não pode ser facilmente transformado no segundo.

Vamos falar sobre os gêmeos, Smoke e Stack. A vida de Smoke mudou para sempre quando perdeu o filho, uma tragédia que também destruiu seu casamento com Beatrice. Apesar de seu domínio da feitiçaria, Beatrice não conseguiu salvar o filho. Já a história de Stack carrega consigo sua própria tristeza: ele se apaixonou por uma mulher branca na juventude, mas as barreiras étnicas da época tornaram o casamento impossível. Sua expressão máxima de amor se tornou um ato de sacrifício: abandoná-la para que pudesse se casar com um homem branco, embora seu coração pertencesse a outro.

Agora, nos voltamos para a premissa dos vampiros. A imortalidade e a imunidade a doenças são atributos essenciais de sua espécie. Se os personagens acima possuíssem essas habilidades, seus problemas provavelmente desapareceriam. Considere a doutrina da igreja: seu poder vem da promessa do céu ou da ameaça do inferno após a morte. Mas e se os humanos nunca morressem? Essa doutrina perderia seu fundamento. Enquanto os humanos veem as crianças como a continuação de suas vidas, a biologia nos mostra que espécies com vida mais longa geralmente produzem menos descendentes. Os vampiros se perpetuam de forma diferente — não por meio da reprodução, mas pela transformação de outros. Quanto à história de amor de Stack, ele e sua amada poderiam simplesmente hibernar até o século XXI (ou talvez o século XXII, já que muitas das barreiras ainda persistem).

De fato, se os humanos alcançassem a imortalidade, poderiam perder o impulso de resolver problemas, afinal, o tempo acabaria por dissipar todos eles.

Coogler explora isso por meio das palavras reveladoras do líder vampiro Bert para Sammie. Após recitar passagens bíblicas sobre a força divina, Bert revela: “Somos terra, animal e deus. Somos mulher e homem. Estamos conectados, você e eu, a tudo”. Isso sugere uma profunda semelhança entre os vampiros, eles apagam as diferenças convertendo os outros à sua espécie. No entanto, levanta uma questão crucial: em um grupo sem diferenças individuais, como alguém pode definir o que é “você” ou “eu”?

Além disso, os vampiros de Coogler não são meros indivíduos imortais. Eles compartilham memórias com toda a sua espécie. Suas experiências de vida formam um amálgama coletivo das experiências de cada membro. Diante dessa vasta e infinita consciência compartilhada, a privacidade das experiências individuais se esvai na insignificância.

Perder a privacidade é mais assustador do que a própria morte, pois significa que você nunca viveu de verdade como você mesmo.

Para os personagens sob a lente de Coogler, seus diversos traumas psicológicos os levam a transcender a si mesmos de maneiras únicas. Embora detestem suas feridas psicológicas, compartilham a convicção comum de que somente eles mesmos podem resolver seus conflitos internos. Ao se juntarem aos vampiros, eles perderiam para sempre essa chance de autotranscendência.

Agora, voltando à nossa pergunta inicial: por que o canto humano teria tanto poder? Coogler oferece uma resposta por meio de seus personagens no final:

Sammie: Sabe de uma coisa? Talvez uma vez por semana eu acorde paralisado, revivendo aquela noite. Mas antes do sol se pôr, penso que aquele foi o melhor dia da minha vida. Foi assim para você?

Stack: Sem dúvida. Foi a última vez que vi meu irmão. Foi a última vez que vi o sol. E, por apenas algumas horas, éramos livres.

Nesta cena, Sammie havia passado a vida inteira cantando blues e estava à beira da morte devido à velhice. Embora tenha perseguido seu sonho, seu melhor dia não foi cantando, foi naquela noite horrível antes de deixar a cidade. Será ele masoquista? De jeito nenhum. Ele deixa claro que a noite lhe trouxe dor, porém, após o pôr do sol, passou a ver aquele dia como belo. Como Sammie se curou do trauma em apenas um dia? Talvez nunca saibamos, mas podemos ter certeza de que, ao final do dia, ele havia aceitado sua vida. Ele separou a parte “horrível” daquele dia da parte “bela”, reconhecendo a beleza sem deixar que a escuridão a ofuscasse. Embora pesadelos ainda o acordassem, ele sempre poderia retornar à prática de abraçar os belos momentos sem rejeitar toda sua experiência.

A resposta de Stack revela as limitações da existência vampírica. Sua imortalidade não lhe trouxe transcendência; ele não pode se reunir com o irmão nem vivenciar as mudanças de humor entre o dia e a noite. Ao contrário de Sammie, Stack não enfrentará a morte por velhice, mas também não pode moldar sua vida por meio de escolhas. Embora Stack tenha comprado todos os álbuns de Sammie e pudesse preservar essas músicas para sempre, ele nunca poderá cantar como Sammie, ele nunca possuirá a perspectiva mortal que molda como Sammie escolhe cantar.

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