A minha melhor amiga de infância era a televisão. Eu era uma menina muito quieta, que não costumava fazer amizades com muitas crianças facilmente e não entendia muito bem de onde as pessoas tiravam assunto para conversar (isso, aliás, é algo que continuo sem entender até hoje). Então acabava passando muito tempo em frente à TV, aquele aparelho de tubo mágico que não me obrigava a interagir com ninguém e tinha horário certo para tudo.
Foi assim que vários seriados, sobretudo americanos, entraram na minha vida. De Punky - A Levada da Breca a Um Maluco no Pedaço, assistir aos programas fazia eu me sentir menos solitária e mais abraçada. Foi só bem mais tarde que percebi que estes seriados também foram os responsáveis por alguns hábitos e noções de cultura entranhados em mim, mas que nunca fizeram parte da minha realidade. Eram costumes que são mais tradicionais nos Estados Unidos e que não compunham o cenário do meu ciclo social e familiar, mas que de alguma forma entraram na minha cabeça como o que era correto a se fazer. É a dominação cultural que eu só viria a entender completamente alguns anos mais tarde.
Tudo isso me veio à mente quando comecei a assistir aos episódios da série Pablo & Luisão no Globoplay. A sitcom idealizada por Paulo Vieira conta as desventuras de seu pai, Luís, e o melhor amigo dele, Pablo, em uma sequência inacreditável de enrascadas nas quais os dois se metiam enquanto tentavam levar uma vida um pouco melhor e mais estável. A série é narrada do ponto de vista infantil/adolescente de Paulo e seu irmão, Neto, dois meninos que muitas vezes acabavam se vendo no meio das peripécias da figura paterna.

O que mais me encantou é que a série não floreia ou ofusca uma realidade simples, mas também não a romantiza. Hoje ator e humorista reconhecido, que enche a tela de ousadia e sagacidade toda vez que aparece na Globo, Paulo Vieira mostra que levava uma vida humilde em Palmas (TO) com a mãe, o pai e o irmão, e compartilha suas lembranças de forma engraçada, mas sem tirar o peso das coisas como realmente são para uma família brasileira batalhadora. Pablo e Luís ganhavam a vida vendendo os salgados que Conceição, mãe de Paulo, fazia, e circulavam pela cidade montados em duas bicicletas equipadas com pequenas estufas. Os dois inventavam empreendimentos malucos, caíam em golpes ridículos e levavam prejuízos grandes na tentativa de melhorar os negócios e ganhar dinheiro honestamente. Em um determinado episódio, Luisão leva toda a família para morar em uma sala comercial, um quadrado sem cômodos divididos e que mal tinha banheiro, para conseguir economizar mais ou menos uns R$ 150 por mês. Em outro, cai em um golpe envolvendo criar ovos de avestruz (golpe este que prejudicou 50 mil pessoas que perderam, juntas, cerca de R$ 1 bilhão).
Fui levada de volta à minha infância pensando em como Paulo escolheu falar de sua própria vida com humor, apesar de afirmar, em determinado momento da série, que não via aprendizado algum que poderia tirar de uma determinada situação particularmente complicada para ele e sua família. Ele pode até tentar não admitir, mas a verdade é que, ao criar Pablo e Luisão, Paulo Vieira faz mais do que apenas contar sua infância e adolescência com toques bem humorados: ele devolve o Brasil de presente para os brasileiros.
É evidente que algumas situações narradas ali só poderiam acontecer no Brasil, mas o que torna a série algo genuinamente nativo vai além disso. É a abordagem honesta da realidade social que faz parte da vida de milhões de pessoas. Vivemos em um país que tenta constantemente nos fazer acreditar em meritocracia, enquanto todos os dias o neto de algum bilionário assume a presidência de uma empresa sem ter qualificação para isso. O humor refinado e franco de Paulo Vieira nos faz rir de situações embaraçosas e inacreditáveis, mas também nos faz refletir sobre a realidade de um sistema feito para o pobre sair perdendo. Afinal, será que é mesmo possível que os muitos Pablos e Luisões deste país vençam se o capitalismo foi desenhado para que eles continuem perdendo?

Sem panfletagens baratas e óbvias, Pablo e Luisão provoca esta reflexão com muita naturalidade; não só pelo texto rápido, escrito em parceria com Bia Braune, Caito Mainier, Maurício Rizzo, Nathalia Cruz e Patrick Sonata, mas porque o entrosamento do elenco é sentido. As crianças, Yves Miguel e João Pedro Martins, estão confortáveis nos papéis e são bem dirigidas. Os adultos, Aílton Graça, Otávio Müller e Dira Paes, capturam a essência de seus personagens e elevam suas características mais marcantes. Além disso, cada episódio é uma participação especial surpresa mais deliciosa que a outra.
Penso nisso enquanto assisto à série e me encanto com o tom universal do texto, que faz piadas familiares e equilibradas – nada infantil demais a ponto de perder o adulto, e nada adulto demais a ponto de deixar a criança para trás. Há um requinte que não encontramos em todos os lugares na hora de fazer piada boa, engraçada e que não debocha de ninguém. Ao seu próprio modo e sem perder o espectador, Paulo mergulha em assuntos dos quais a TV foge como o diabo da cruz, como as falhas da luta contra as drogas no Brasil e a ideia simplista do homem bruto e machão do interior. Sem querer, a série colocou um espelho na frente da cara do Brasil inteiro, fez a gente se sentir abraçado e ainda rir do quão difícil é tentar ser alguém por aqui.
Por tudo isso, volto com um olhar mais brando à memória da minha infância povoada por produções estrangeiras que me mostravam casas impecavelmente arrumadas e todas as tradições familiares que não faziam parte da minha rotina. Eu não me enxergava dentro daqueles seriados simplesmente porque eu não existia neles. Pablo e Luisão, a série, não vai curar todas as vezes em que fui uma criança com vergonha da minha própria realidade, mas talvez possa garantir que outras crianças não se sintam assim.
Toda essa relação de identificação que está no entorno de Pablo e Luisão só reforça a suma importância do fomento ao audiovisual brasileiro, um assunto muito falado, mas pouco entendido. A produção cultural é a forma mais fácil e democrática de acesso às nossas múltiplas realidades, e garantir que as pessoas consigam se enxergar nas novelas, nas montagens teatrais, filmes, séries e músicas é uma forma de fazer com todos se sintam parte da comunidade e reconheçam a importância de suas próprias tradições e hábitos.
Afinal, se a massificação da hegemonia norte-americana no cinema e na televisão eleva o status cultural e a dominação de um país que já se enxerga como centro do mundo, investir nas nossas próprias histórias é o caminho mais curto para fazer com que nossas lembranças e nossas referências de mundo sejam cada vez mais heterogêneas, diversificadas e abrangentes. Com um simples gesto de olhar para as dificuldades de sua infância e fazer graça, Paulo Vieira mostra tudo isso sem jamais sentir a necessidade de esfregar uma cartilha na cara do seu espectador.
A primeira temporada de Pablo e Luisão está disponível no Globoplay.



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