Sabem essas crianças doidas por dinossauro? Eu fui uma delas. E sei exatamente como eu me tornei. Crescendo no interior de São Paulo, nas profundezas da cidade de Sorocaba, eu passava o dia inteiro depois da escola na mercearia da minha mãe. Do outro lado da rua havia esse casarão enorme onde morava uma velhinha junto com sua filha e suas duas netas. As netas eram umas gêmeas colegiais que afetavam muito o meu imaginário prepubescente. A filha era uma professora que ia todos os dias na mercearia pra comprar pão. A velhinha também foi professora, então já aposentada, mas cujos anos de carreira marcaram a cidade. Até nomearam uma escola em homenagem a ela.

Eu adorava ir naquela casa, onde era muito bem-vindo, mesmo que minha mãe tivesse receio de eu estar incomodando. Aos meus olhos o lugar era enorme como uma mansão. Tinha uma rampa circular na entrada que passava junto a uma grande árvore no jardim. A velhinha gostava de mim e sempre me deixava mexer nos seus livros. Havia dois em especial que eram os meus favoritos. Eu sempre pegava emprestado, então um dia ela decidiu me dar de presente. Eram da mesma coleção, "O Mundo da Criança". Um era uma coletânea de contos e fábulas do mundo todo, acompanhados por umas ilustrações lindíssimas. O outro era um livro de biologia, com fotos de tudo que é bicho. Inclusive, tinha uma foto de uma aranha caçando um peixe que me aterrorizava. Mas o que mais marcou mesmo foi uma sessão inteira do livro que era dedicada a dinossauros. Eu ficava horas lendo e relendo as descrições das diferentes eras, das várias espécies e subespécies e olhando para aquelas ilustrações científicas hiper detalhadas. Foi quando eu fui fisgado. Quando a mania por dinossauros atingiu os anos 90 com Jurassic Park, eu já era um especialista, impressionando meus coleguinhas com meus conhecimentos avançados - ou pelo menos é assim que eu me lembro.

Steven Spielberg também foi, como eu, uma criança doida por dinossauros, inspirado por filmes como o King Kong clássico e os trabalhos de Ray Harryhausen. Não é a toa que seu parque de dinossauros tenha inaugurado o apogeu dessa era da cultura pop, acompanhado por vários outros filmes, seriados e videogames, e infelizmente iniciando uma franquia que continua até hoje, com filmes cada vez piores. Mas antes de Jurassic Park, Spielberg já havia trabalhado com os lagartos gigantes. Após Indiana Jones, ele havia se juntado novamente a George Lucas, amigo de longa data e outro nerd galopante, para produzir uma animação estrelada por um grupo de filhotes de dinossauros numa jornada de sobrevivência. Para isso, chamaram o lendário diretor Don Bluth para comandar o projeto. Bluth foi autor de tantas animações fantásticas entre os anos 70 e 90, com um estilo que era ao mesmo tempo único e familiar, histórias indubitavelmente infantis que não tinham medo de expor uma camada sombria em sua composição. Como a alegoria à situação do imigrante nas américas que foi Fievel - Um Conto Americano. Ou A Ratinha Valente, que nada mais era que a história de uma mãe solo tentando proteger seus filhos dos horrores absolutos que assolavam o mundo ao seu redor. Sem falar nas visões do inferno realmente aterrorizantes que ele criou para Todos Os Cães Merecem o Céu. Nessas décadas em que o campo da animação ocidental era dominado pelo estilo Disney, Don Bluth, que trabalhou como animador no estúdio do Mickey, era o lado B dos desenhos animados. E eu absolutamente amava todos esses filmes. Quase sempre que meu pai me levava numa locadora quando eu era criança, eu voltava pra casa com uma das obras de Bluth. Mas acima de todas, era Em Busca do Vale Encantado, a colaboração do diretor com Spielberg e Lucas, que mais instigava aquele pequeno paleontólogo.

É um filme curto, com pouco mais de uma hora de duração, mas que por um tempo se tornou a maior bilheteria já alcançada por uma filme animado. A história, escrita por Tony Geiss e Judy Freudberg, segue um dinossaurinho chamado Littlefoot (Gabriel Damon). Após sua mãe morrer protegendo-o do ataque de um tiranossauro, ele se vê sozinho numa enorme paisagem devastada. As árvores estão todas morrendo e a comida está acabando, ao mesmo tempo que um grande terremoto separou vários filhotes de espécies diferentes de suas manadas. Tentando superar a tristeza, a fome e o luto, Littlefoot se lembra das últimas instruções de sua mãe. Ele começa a marchar em direção a um lugar mítico do qual ela lhe contou, conhecido como Vale Encantado, onde a vegetação ainda permanece oferecendo uma promessa de sobrevivência. Durante o caminho, ele vai encontrando aos poucos seus novos companheiros de viagem: Saura (Candace Hutson), uma filhote de triceratops mau-humorada e briguenta, a diminuta e animada Patassaura (Judith Barsi, assassinada um pouco antes da estreia do filme, numa das tragédias menos comentadas que ainda assombram Hollywood), o pequeno pteranodon Petrúcio (Will Ryan, o único ator adulto a interpretar um dos filhotes do grupo, e não sei se tem algo a ver com isso, mas é o personagem mais irritante) e o gigante comilão Espora, recém nascido do ovo e o único do grupo que não fala, como se fosse uma criatura mais selvagem, um animal mais puro que os outros. Cada um começa a seguir Littlefoot, atraídos pela promessa da existência do Vale Encantado, onde suas famílias podem estar esperando por eles.

Trata-se de uma daquelas histórias clássicas de superação, do tipo que tanto aparece em filmes infantis, adornada por uma metáfora óbvia sobre preconceito e aceitação, com as diferentes espécies de dinossauros superando suas diferenças e aprendendo a confiar uns nos outros. Nesse sentido, apesar de Littlefoot ser o protagonista, é Saura quem tem o principal arco de personagem. Ela começa o filme replicando os preconceitos de seu pai, que a proibia de se aproximar das espécies diferentes, e passa grande parte da história intimidando ou ignorando os outros filhotes, para no final aprender uma lição sobre humildade e vulnerabilidade. Revendo o filme hoje em dia com olhos de adulto cheio de referenciais chatos, esses clichês básicos ficaram mais claros para mim. Assim como problemas narrativos e técnicos. É um filme que sofreu muitos cortes durante sua produção, e realmente aparenta sê-lo. Há erros de continuidade e furos de roteiro, e os modelos e cores dos personagens mudam de cena em cena. Bluth explica um pouco disso ao falar sobre como foi complicada a interação com Spielberg e Lucas, e que desde então preferiu trabalhar com menos interferência de estúdio.

Ainda assim, a maestria de Bluth como storyteller compensa os deméritos da produção. Seu estilo de animação e de design de personagens sempre buscou unir o cartunesco com o expressivo, o "fofinho" com o realista. Aqui, isso transforma os dinossaurinhos em criações únicas. Afetuosas, porém grotescas. Monstrinhos cheios de dobras, texturas e linhas de expressão, mas ainda assim, cativantes. A equipe de animadores se superou no desafio de criar cenários que abrigassem esses personagens, enquanto exprimem uma desolação triste e árida. De rochas duras e empoeiradas a montanhas incandescentes, os cenários ganham uma surrealidade latente mesmo mantendo uma certa dose de realismo. E o ritmo da narrativa consegue a proeza de deixar um filme tão curto com a sensação de ser mais longo - geralmente quando digo isso não é um elogio, mas aqui isso nos permite permanecer mais nas cenas, com um passo vagaroso que é convidativo e um pouco enigmático. O melhor exemplo disso é a cena em que a mãe de Littlefoot está lhe contando sobre o Vale Encantado pela primeira vez. Littlefoot caminha atrás dela e pergunta: "mas você já esteve lá?". E ela se vira e responde: "não". Mas, sendo um saurópode com um pescoço bem longo, o ato dela se virar demora um tempo, com sua cabeça saindo da tela por um momento antes de ressurgir e encarar Littlefoot de frente. É um momento que dura dois ou três segundos, mas parece bem mais. O efeito é o de destacar a grande diferença de tamanho entre os dois personagens, mas também simboliza a morosidade das vidas que eles vivem, que algumas cenas depois é interrompida. Aliás, o momento da morte da mãe de Littlefoot é outro exemplo clássico da sensibilidade da obra de Bluth. Uma cena pesada e sombria, que que instiga e respeita a inteligência emocional de seus jovens espectadores. Foi assim comigo. A bela e emotiva trilha sonora composta por James Horner vive comigo aqui até hoje.

O ato de revisitar esse filme, e consequentemente essa parte da minha identidade, acaba sendo um convite a uma análise dessas lembranças e dos sinais físicos que elas deixaram. Ainda tenho o livro de fábulas, mas não faço ideia do que aconteceu com o livro de biologia. Eu passei um dia em Sorocaba um tempo atrás e visitei a rua em que ficava a mercearia da minha mãe. Parece que depois virou uma loja de materiais de costura, mas quando eu vi o local estava fechado há algum tempo. A casa da velha professora foi derrubada e construíram um pequeno prédio de apartamentos. A grande árvore que ficava na entrada também já era. Assim como as locadoras em que eu alugava os filmes de Don Bluth. Ainda assim, pra quem sabe onde procurar, os fósseis daquele passado ainda existem.
E, francamente... olhando para trás agora... eu não sei se consigo enfiar mais nostalgia nesse texto.



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