Posso estar enganado, mas acredito que foi Murnau quem fez, com M, O Vampiro de Dusseldorf (1931) o primeiro filme com um tipo de inquietação que o cinema de terror cristalizaria bem nas décadas seguintes do pós-guerra: o medo da vizinhança. Bairros isolados, cidades pequenas, uma sensação constante de que um mal espreita bem debaixo de nossos narizes. Talvez o ápice desse tipo de narrativa - que seguiu sendo produzida amiúde nos anos seguintes - viria quando John Carpenter lançou seu Halloween, em 1978. Michael Myers, o monstro carpenteriano por excelência, era um agente do cinema para trazer o caos ao símbolo máximo do american way of life: os subúrbios estadunidenses.
Casas padronizadas, gramas aparadas, ruas seguras onde crianças podem brincar livremente. Os subúrbios americanos são um símbolo máximo da propriedade privada, da segurança e da conformidade social. Claro, trata-se de uma imagem essencialmente branca, de uma América pós baby boom, uma espécie de construção de ideia de paraíso via embalagem do bem estar. O assassino mascarado carpenteriano era uma ameaça a essa ordem, andando pelas sombras, esgueirando-se entre arbustos, quintais, lençóis no varal.
Carpenter foi muito bom nesse tipo de terror suburbano, assim como outros cineastas do calibre de David Lynch também se esgueiraram pelas tripas dessa cosmética da vida americana hipócrita. Mais recentemente, talvez a melhor filmografia a lidar com essa tradição seja a de David Robert Mitchell, que tem uma trilogia de filmes totalmente dedicada a observar a vida nos subúrbios a partir de um viés muito particular - o do que acontece quando ninguém está olhando.
É a esse tipo de cinema que um cara como Zach Cregger vem se afiliando em seus filmes de horror. Há poucos anos o comediante dirigiu Noites Brutais, um filme interessantíssimo na maneira como concilia bizarrice suburbana com um senso de humor perverso, construindo sua historinha macabra a partir de um tom de lenda urbana digno dos crocodilos que supostamente vivem no esgoto. É a esse imaginário bairrista que ele retorna em seu novo filme, A Hora do Mal, que apesar do título brasileiro não tem nada de vagabundo, antes entregando um filme com encenação limpa e muito precisa, um filme de terror cuja preocupação maior é, pasmem, ser um bom filme.
Em um mundo onde o pseudo “art housismo” do cinema de terror comercial anda muito preocupado em utilizar o gênero como analogia de um mal estar fabricado, o filme de Cregger parte duma trama simples - 17 crianças somem após saírem correndo de suas casas durante uma madrugada - para criar de maneira engenhosa um jogo de pontos de vista que funciona como um quebra-cabeças de bizarrices suburbanas que me fez pensar que o diretor seria um bom nome para adaptar Black Hole, quadrinho de Charles Burns, para o cinema. É também significativo como constrói a relação entre crianças e armas/mísseis, bem como coloca uma professora como alvo de toda uma comunidade que a enxerga como alguém que fez mal a seus filhos. O barato é que faz isso sem recair num didatismo meio bobo, é um filme com as antenas erguidas para questões do hoje que não me parece muito interessado em tentar se vender como alegoria para quaisquer questões, mas sim como sintomas (lembra que falei sobre essas paisagens suburbanas como sinônimo de american way of life?).
Em um filme onde se acompanha a reação de pais, parentes e amigos que foram deixados para trás e não entendem o mistério em volta do desaparecimento das crianças, seria muito fácil construir aí um “filme de terror de luto” (uma dessas tendências desde que a A24 descobriu que isso era porta de entrada para uma espécie de “terror sério”, “inteligente”, “de gente grande”). É o psicologismo do mal, onde deixa-se de fora o que torna o terror um gênero muito relacionável - as vísceras, as entranhas, o medo irracional e primitivo da morte - em prol dessas metáforas chatas sobre luto e trauma. Aqui, não. Perde-se pouco tempo na retratação da dor, não tem Josh Brolin catarrento abraçado ao ursinho do filho que desapareceu. Antes, todo mundo da cidade tem ódio. Ódio da ineficácia da polícia, ódio dos possíveis culpados que ainda desconhecem. Falta ódio ao terror contemporâneo, assim como falta esse senso de diversão que Cregger entende bem.
Do que ele entende bem também é de câmera, munindo-se de uma fotografia que sabe através das cores conduzir o olhar e as emoções do espectador, e a partir da mise-en-scène conduzir sua história com uma passividade enervante, sem nunca deixar de ser elegante na maneira como resolve a movimentação de tudo o que está em quadro. Cregger tem essa qualidade rara que hoje em dia poucas pessoas parecem valorizar no cinema de terror em detrimento dos temas que os filmes vão tratar: sabe pensar imagens. É um filme de câmera classuda e planos bem compostos, que só movimenta quando sabe que o deslocamento do olhar potencializará o que está sendo visto, ao mesmo tempo que nunca deixa de entender o valor de um plano estático (ou do velho feijão com arroz do plano e contraplano para se filmar diálogo, que aqui ainda consegue extrair um susto digno do primeiro Insidious, de James Wan).
Apesar de ser um filme por vezes muito escuro, aqui tudo também está posto muito às claras, sem muito joguinho com o público. Assume que trata-se de uma história de caráter episódico, assume que acompanharemos eventos que se interseccionam a partir de diferentes pontos de vista, assume que estes personagens são pessoas reais e já não existem vilões e mocinhos, e o principal: entende-se que cada um deles, em cada bloco separado em cartelas pela montagem, enfrentará algo de sinistro em algum momento. É como uma orquestração de set piece, sempre um “agora acompanharemos fulano e em determinado momento haverá um susto”. Sabemos que o susto virá, o que permite que o diretor se delicie com a construção da antecipação - tempero essencial para um bom suspense.
É um filme de perturbação do status de bem estar social que esses subúrbios representam, com a diferença de que aqui o motor reacionário que geralmente guia uma boa história de terror (a tentativa de voltar a uma ideia de paz que foi perturbada a partir do surgimento do monstro que catapulta a trama) não terá vez. No conto de fadas suburbano de Cregger nada volta a ser como antes.



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