No primeiro dia começou tudo normal. Acordei normal, dei um beijo na mulher normal - ela roncava que só a porra. Tomei café normal, pão na chapa com solúvel da noite anterior que ainda tinha no quente-frio. Me arrumei e saí. Mesma coisa de sempre, fui andando pela Dutra, dobrei na Waldemar Pacheco, peguei a Bartolomeu Dias Gomes e segui direto. Igual todo dia.
Só que aí na hora de dobrar a esquina da Bartolomeu pra seguir pela Professor Pinto Fonseca, eu estranhei uma coisa: tinha uma casa ali que não tinha antes. Quer dizer, eu pelo menos nunca vi. Casa bonitinha, assim, um sobradinho, meio antiguinho e com cara de abandonado. Olhei pra cima e vi que alguma coisa na janela se mexeu bem rápido, como se fugindo de mim. Notei isso mas passei direto, só fui pensar a respeito quando tava vindo pra cá encontrar o senhor.
No segundo dia começou normal também. A mulher roncava menos. Deu tempo d’eu passar um café novinho, ainda deixei um pouco pra ela no quente-frio. A coisa não ia muito bem no casamento, mas não é por isso que a gente vai deixar de ser gentil com quem suportou a gente tanto tempo, né, doutor? Pois bem, peguei o mesmo caminho. O sol tava pelando, mas a gente que é burro véio se acostuma a gastar sola em asfalto quente. Fui me arrastando feito condenado pela Dutra, dobrei na Waldemar Pacheco, peguei a Bartolomeu Dias Gomes e segui direto. Na hora de dobrar a esquina da Bartolomeu pra ir pra Professor Pinto Fonseca, veio um arrepio na nuca: senti que tinha alguém me observando. Olhei direto pro sobradinho, por puro instinto. Dessa vez, avistei uma coisa ainda mais esquisita no vidro do quarto do andar de cima. Tinha dois olhos me olhando, doutor. Mas não era olho de gente. Parecia olho de bicho, de demônio. Não dava pra entender o que tava ao redor desses olhos, o vidro sujo e o sol me cegando. Quando fiz a palma da mão de sombreiro, os olhos esconderam-se dentro da casa. Tudo muito rápido. Olhei pro portão do sobradinho, trancado com aqueles cadeados Papaiz enferrujados com cara de que não eram abertos desde que vovó era mocinha. Me tremi todinho e saí correndo pela rua, como se a morte viesse atrás de mim a galope.
No terceiro dia, a mesma coisa de sempre, só que o café tinha acabado. Fui de água, peguei natural do filtro porque gelada de manhã não cai legal não. Dutra, Waldemar, Bartolomeu. Podia ter tentado pegar a Juracir Magalhães, mas não teve jeito, alguma coisa me instigava a passar de novo pela Professor Pinto Fonseca. Virei a esquina e dei uma olhada na janela de cima do sobrado. Foi aí que ficou ainda mais esquisito, porque tinha a porra de um cavalo na janela. Cavalo mesmo, não sei como botaram um cavalo no segundo andar de uma casa no subúrbio. Mas tava lá, o bichão me olhando e eu olhando pra ele. Ele tinha um olhar de gente, ficava seguindo enquanto eu andava. Tinha alguma inteligência naquele olhar. Acho que ficava me encarando esperando que eu fizesse algo, entende? Me benzi e segui meu caminho apressado.
No quarto dia eu acordei bem antes do despertador, por causa de um sonho. Sonho não, pesadelo, né? Eu sonhei com o cavalo da janela. Mas assim, doutor, era um sonho meio estranho. Tinha horas que era o cavalo mesmo, mas tinha horas que não parecia que era ele. O rosto era dele, cara de cavalo mesmo, mas às vezes parecia que ele tinha bunda de mulher. Tinha umas horas que eu quase podia sentir a pele dele. E não era pele de bicho, era pele de mulher. Eu lembro de passar a mão nele, assim, fazendo carinho mesmo no lombo do bicho, e era tipo apertar peito de mulher. Não sei se dá pra entender. Mas a sensação era a mesma. Eu passava a mão nas costas do cavalo e era igual a apertar uns peitões, assim, bem naturais, entende? Aí quando eu fazia isso, ele me olhava e falava pra eu apertar mais forte. Só que a voz não era voz de cavalo. Não que eu saiba como é voz de cavalo, mas era voz de homem. Parecia a minha voz, na verdade. Era como se eu estivesse falando aquilo pra mim mesmo. Só sei que acordei meio assustado com aquilo tudo, ao mesmo tempo de pau duro também.
Aí procurei a mulher. Fazia tempo que não procurava, mas não tava aguentando de tesão e ainda faltavam uns 10 minutos até o despertador tocar. A mulher não quis. Levantei com a taca dura mesmo, fui tomar meu banho gelado e segui em frente. Dutra, Waldemar, Bartolomeu. De bola azul fui pra tela azul: dobrei a esquina e esqueci de olhar pra janela do sobradinho, tamanha a perturbação que tava minha cabeça. Quando percebi, voltei meio caminho correndo, só pra olhar a casa. Foi a minha pior decisão.
Na janela, o cavalo ainda tava lá me olhando. Mas agora o olho dele era o olho da minha mulher. Eu conhecia aquele olho. Olho de reprovação, olho que me olha quando faço merda. Mas aí o focinho do cavalo parecia o nariz dela. A crina era o cabelo dela também. Era uma imagem muito estranha, a cara do cavalo misturada com a cara da mulher me olhando pela janela suja daquele sobrado que nunca tinha ninguém. Eu fui até o portão e bati palma, soltei um “ô de casa” pra ver se eu não tava ficando maluco em ver um cavalo na janela. Não apareceu ninguém, doutor. Ninguém. Passei o dia com aquela imagem na cabeça. O cavalo com os olhos da minha mulher, o nariz da minha mulher, o cabelo da minha mulher. Os peitos da minha mulher. O cavalo seiudo, doutor. Você entende? No horário de almoço não aguentei, fui no banheiro do serviço mesmo e dei uma aliviada. Passei o restante do dia me sentindo culpado, sujo, medíocre. Nunca fui bom de redação, como é que tava conseguindo imaginar aquilo tudo, doutor?
Quinto dia. Língua pastosa, sem nada pra molhar o bico. Dutra, Waldemar, Bartolomeu. Professor. Dessa vez, a janela tava aberta. O cavalo não aparecia. Fiquei plantado de butuca ali, feito besta, até ouvir um tropel na rua. Quando olhei, vinha um grupo de moleques descamisados, tudo com cara de vagabundo, montados em cavalos, conduzindo os bichos pro matagal da beira da Dutra, provavelmente pra pastar. Fui correndo atrás deles no embalo, meio que tentando puxar assunto. Perguntei se alguém sabia de um cavalo que ficava espiando pela janela do sobrado da Professor Pinto Fonseca. Eles riram, doutor. Riram da minha cara como se eu fosse um desses malucos de boteco que contam história de pescador mas nem sabem usar a vara. Um deles, o mais branquelo, falou bem assim: Esse cavalo sempre escolhe um homem casado daqui do bairro pra montar.
Pedi pra explicarem, deram risada e se picaram. Gritei que em troca de respostas podia fazer a boa, contribuir com um guaraná pra rapaziada. Mandaram eu me fuder. Fui trabalhar assim, fudido, pensando na janela aberta.
Na madrugada do quarto dia, sonhei com o cavalo alado, voando pelo céu com minha mulher montada nele, cintaralho na virilha e máscara de zorro cobrindo os olhos. Acordei meio confuso, sentindo uma mão passando pelo meu corpo: a mulher tava me procurando. Estranhei, né, já fazia tempo que não rolava porra nenhuma entre a gente. Já te contei isso, não contei? A gente não namorava fazia tempo. Ela veio e nem falou nada, apenas montou como se eu fosse um objeto, como se eu fosse bicho. Fiquei duro feito osso na hora, de instantâneo. Começamos desajeitados, aqueles movimentos mecânicos meio sem jeito de quem há tempo parou as máquinas e tá deixando a ferrugem comer tudo, o doutor deve saber como é. Só que aí fomos pegando tração. O despertador tocou e eu não tava nem aí. Vai, amor, isso. Quando começou a ficar bom, no meio da coisa toda eu vi os olhos dela virarem olhos de cavalo. O dente também alongou, e quando ela gozou soltou um relincho que atravessou minhas costas. Gozei de imediato, urrando (talvez meu urro tenha sido relincho também, pensando agora).
Só sei que aí olhei pro espelho do quarto e vi a imagem mais linda da minha vida: eu era cavalo, doutor. Inteiro cavalo. E ela, nua, só mulher mesmo, suada e sorridente. Chegou perto, passou a mão no meu focinho e sussurrou no meu ouvido mandando eu abrir a cortina enquanto ia tomar banho.
Levantei com aquele cheiro de suor, porra e feno por todo lado. Trotei com os joelhos meio trôpegos até a cortina e abri. A luz do sol veio forte, rasgando todo o breu do nosso quarto. Me senti bem com aquela luz em mim. Ia chegar atrasado mesmo no trabalho, tava nem aí. Abri a janela e deixei o vento matinal entrar. Inspirei fundo e de olhos fechados, lembrando do sorriso da mulher suada. Foi quando passou um cara na rua, fraco de feição, tipo pobre diabo a caminho do abate diário. Ao atravessar a calçada, seu rosto virou em direção a minha casa. Nossos olhos se encontraram. Foi nesse momento que o cidadão, em completo horror, tremeu-se todinho e saiu correndo pela rua. Como se eu estivesse atrás dele a galope.



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