Saí meio cabisbaixo da sessão de O Agente Secreto na segunda-feira. Algo havia descido não tão bem - ao menos não tão bem quanto eu esperava, visto que o filme tem momentos inesquecíveis de força cinematográfica retumbante. Assisti na última segunda-feira e sigo pensando no longa, tentando ruminar algo que me faça entender o que me fez sair da sala diferente de como saio na maioria dos filmes de Kleber Mendonça Filho, um dos cineastas que considero mais interessantes no cinema brasileiro hoje.
Decidi escrever a respeito para ver se consigo elaborar algo sobre o meio do caminho em que fiquei entre o amar e o desgostar. Escrevo não uma análise de um filme, mas uma tentativa de expor a mim mesmo e dividir com o leitor o que senti e captei nessa primeira assistida a O Agente Secreto, filme que pretendo revisitar muitas outras vezes quando estrear nos cinemas. Escrevo porque toda crítica é uma autobiografia, então vale a pena não falar do filme, mas falar de mim a partir da minha experiência vendo o filme. Escrevo com o carinho que merecem os filmes que nos afetam e permanecem inquietando, para o bem e para o mal, por dias a fio.
Primeiro há de se destacar o domínio que Kleber tem da caixa de ferramentas do cinema. É um domínio único em termos de cinema brasileiro, sinto, especialmente porque ele é proveniente de um gosto cinematográfico forjado a partir de uma cinefilia que encarou toda a produção cinematográfica mundial sem hierarquias. Para Kleber, o mais sensível drama japonês anda de mãos dadas com o mais vagabundo ozploitation australiano. Gosto disso, me identifico com isso, porque é o que me alimenta em meus próprios filmes. O cinema dito “B” oferece pra gente algumas pecinhas de LEGO com cores que não se encontra na Ri Happy. Kleber usa e abusa dos zooms desajeitados, das transições em cortina, dos split diopters e split screens - tudo estilização a partir de elementos que outrora já foram considerados de mau gosto pela cinefilia “séria”. Existe algo que não se explica mas que se sente no cinema de Kleber, que tem muito a ver com uma sensibilidade exercida especialmente em cima dos filmes setentistas. Um certo tempo de plano, umas certas escolhas de decupagem e corte. Esse ano pude rever O Som ao Redor (que segue sendo o meu favorito dentre seus longas) no cinema e me peguei mais uma vez impressionado com essas decisões de câmera e montagem que não podem ser calculadas, postas em fórmula ou planilha. Você não replica. Você apenas faz, porque o seu inconsciente está borbulhando com décadas e décadas de cinema de gênero na caixola.
Tudo isso está mais presente do que nunca em O Agente Secreto, seu filme melhor dirigido. A primeira cena já é um grande exemplo disso. A forma como o que mostrar, quando mostrar e especialmente o como mostrar caminham juntos para a criação da sensação de que algo não está certo. É um início de filme muito característico do cinema de Sergio Leone, a cadência dos diálogos, a maneira como o cenário é sempre enquadrado junto aos atores como elemento de tensão. Todos os dois terços iniciais do filme são desenvolvidos com rara calma, sem uma preocupação com regrinhas de roteiro e seus atos. É um passeio genuíno e fascinante pelo Brasil dos anos 1970, seus rostos, roupas e personalidades - tudo enquanto paralelamente vai se desenvolvendo um mistério de pano de fundo. São tantos detalhes que dificilmente uma única conferida daria conta da quantidade de ideias apresentadas a cada plano. E sempre há uma estranheza muito bem-vinda, em meio a doses cavalares de atmosfera de spaghetti western.
Aliás, atmosfera talvez seja a palavra que mais me salta aos olhos durante todo o filme. O Agente Secreto é altamente atmosférico, e a atmosfera é uma decisão de mise-en-scène. Tudo converge para ela: câmera, som, corte, arte, atuações. Gosto como ele é tomado por um climão de “vai dar merda” mesmo quando não há nada acontecendo objetivamente para isso. Os trailers, inclusive, ressaltam bem o tanto de plano que o filme tem de Wagner Moura olhando por cima dos ombros para fora de quadro, como se estivesse sempre desconfiado de estar sendo seguido. É um recurso simples mas de força enorme, que expressa o tempo em que os personagens vivem (1977, ditadura militar) sem precisar de uma cartela falando sobre os horrores do regime. Esse clima de faroeste urbano vai se estender durante todo o longa, sempre trocando peça de roupa com o thriller político. Nada mais propício pensar que os personagens estão realmente implicados em um bangue-bangue à brasileira, uma vez que o próprio clima da ditadura favorece níveis de opressão muito diversificados. Soa como um mundo de regras próprias onde quem tem capital para oprimir inventa tais regras. Soa como hoje, portanto.
Após a primeira cena, vem a sequência de créditos iniciais, muito bem montada, carregada de fusões belíssimas (e que até senti falta de vê-las novamente durante o restante do longa), tudo sempre apontando para a ideia de que o filme não apenas se passa nos anos 1970 como também é filmado como um filme do período. A maneira como Kleber emenda travellings com zoom ins é linda, o filme tá recheado de planos longos muito bem encenados, com uma movimentação de câmera rica em criatividade. Aqui cabe falar sobre o impressionante trabalho de Evgenia Alexandrova, talvez a fotografia que mais gosto dentre os filmes do diretor recifense (e olha que aqui ela substitui Pedro Sotero, um dos meus diretores de fotografia preferidos), numa construção de clima que a todo momento grita que se está assistindo a um filme de cinema. É uma surpresa que tenha sido gravado em digital, tamanha é a texturização da imagem, a intensidade das cores e a vivacidade dos grãos - o que aponta também para um muito preciso trabalho de color grading.
Outro ponto a se observar é o uso das lentes vintage da Panavision, o que por si só já cria um visual empoeirado para a imagem do filme, quebrando a alta definição que poderia vir com o uso da Arri Alexa e deixando O Agente Secreto com uma cara opaca, indefinida, misteriosa. Um filme anamórfico que ostenta o Cinemascope parecendo se deliciar a cada flare horizontalizado que rasga a tela, aproveitando cada pedacinho do quadro de bordas distorcidas. É um trabalho visual muito preciso, como poucas vezes vimos no cinema brasileiro - o que só cresce com a direção de arte assustadora de Thales Junqueira, colaborador habitual dos filmes de Kleber, que aqui concebe uma criação de universo historicamente precisa e ao mesmo tempo bastante estilizada. Cenografia e efeitos visuais caminham juntos na recriação da ideia de um tempo. É tudo envolto numa camada febril de nostalgia, difícil não pensar na maneira como Tarantino recria uma época em Era Uma Vez Em Hollywood, outro filme que usa o cinema como máquina do tempo. O Agente Secreto acaba por habilmente construir essa sensação de que é um filme que se passa no mundo dos filmes, sempre muito suspenso da realidade não pela maneira como trata de seus temas mas pela maneira como o filtro do cinema interpreta e decodifica aquela realidade. É prazeroso assistir um filme que ostenta uma mise-en-scène de cinema, ao invés do habitual tratamento pretensamente realista e naturalista ao lidar com o período da ditadura.
Por tudo o que estou comentando aqui, espero que o leitor perceba que me considero uma espécie de público alvo do filme. Os anos 1970 são minha década favorita no cinema mundial, especialmente por englobarem os ciclos favoritos de minha cinefilia, a Nova Hollywood e toda a explosão de cinema de gênero na Itália, onde eclodiram spaghetti westerns, gialli e poliziotteschi. Conta também o fato de que costumo gostar bastante dos filmes de Kleber, um dos diretores que melhor sabem pensar imagem no cinema brasileiro hoje - e O Agente Secreto está carregadíssimo de algumas das imagens mais intrigantes que vejo em um bom tempo. É um filme que costura muita ideia, boa parte delas de uma força de cinema impressionante. O gato, o tubarão, a perna, o sonho, o tiro, a bunda de Gabriel Leone. Cada personagem em cena retratado como ser humano completo, digno, complexo. Caleidoscópio de personagens engraçados, cativantes, carismáticos, irritantes. Tudo registrado com um delicioso ar pulp que pouco se vê no cinema feito no país para além do cinema da Boca nos próprios anos 1970. Por que, então, apesar de amar tanta coisa no filme, saí da sala com um gosto amargo na boca?
Talvez seja por demorar a entender que o filme seria justamente esse desfile de situações e personagens que não são necessariamente amarrados ao fim - ou que são amarrados, mas não de um jeito que me agrada completamente. Vou tentar falar sobre o final sem necessariamente entregar os pontos. Leia a partir daqui por conta e risco. Difícil falar sem dar spoilers, mas a impressão que tive ao fim de O Agente Secreto, era que na quebra de braço entre o cinema e a realidade, aparentemente a realidade havia saído ganhando. Um dos pontos que menos sou afeito no cinema de Kleber diz sobre o quanto muitas vezes sinto que o roteiro para para fazer um comentário sobre o país. São filmes construídos ostensivamente em cima da ideia de “isto é Brasil”, e por vezes a mão me soa pesada demais em obras que nunca deixam para segundo plano a ideia espectatorial de prazer cinematográfico - exceto, justamente, quando parecem querer gritar “isto é Brasil”.
O Agente Secreto está repleto dessa tentativa de, para além de uma boa história ou de um bom filme de gênero, também querer construir uma boa “crônica de Brasil”. Tem o momento “isto é Brasil”, o momento “isto é uma mulher forte”, o momento “isto é História”. Isso acaba por comprometer até mesmo a dubiedade moral de seus personagens, uma vez que vilões e mocinhos estão mais uma vez muito bem delimitados, como em Bacurau. A "resistência" aqui, sequer é armada. O único momento em que o personagem de Wagner ameaça escapar do bom mocismo, é quando narra o desejo de matar alguém - não com uma arma de fogo, mas com um martelo. As armas de fogo ficam para os vilões, o financiamento da resistência para os ricos de bom coração - e até mesmo os fiapos de memória que nos restam nos dias de hoje também só existem por causa de seus herdeiros generosos. Essa mão pesada do comentário sobre Brasil dificilmente me fisga em seus filmes, talvez porque eu seja, antes de tudo, um defensor de um cinema de gênero que seja filme-filme. Cinema brasileiro tem dessas: na maior parte do tempo quando se faz filme de gênero, sempre se quer fazer um “não é só um filme de gênero”, como se o filme precisasse ser algo mais que um exercício de tensão, uma explosão de violência, uma artesania de imagens de sonho e mistério.
No Brasil se faz filmes políticos mas raramente se filma politicamente. Kleber entende isso, e é um dos nossos melhores encenadores (a decupagem de O Agente Secreto esmurra a maioria das coisas a que assisti esse ano de qualquer parte do mundo), mas sinto que o desejo de comentar a realidade prevaleceu aqui. Ao optar pela recusa à catarse, de alguma forma sente-se que o filme se contenta, ao fim, em encerrar sendo um comentário sobre seu próprio tema, através de um epílogo que mais atrapalha que necessariamente soma ao todo. Não me levem a mal, eu adoro a ideia no papel. Gosto do anti-climático, gosto do agridoce, gosto do tom soturno, amo Onde Os Fracos Não Têm Vez tanto quanto amo Operação França. Defendo muitíssimo a ideia de que no cinema brasileiro a gente também precisa de filmes que não necessariamente terminem da melhor forma possível, visto que muitas vezes na vida real nossos inimigos têm sido campeões em tudo e não podemos exigir que o cinema seja essa máquina de alienação a alimentar a fantasia de que ao menos nos filmes nós só vencemos.
Meu problema é mais com o como é feito, não o que poderia ser. Acho um tanto quanto abrupto, corrido além da conta, quase como se não fizesse jus à grandeza do que vinha sendo construído. Dilui a energia que foi construída na sequência de ação e soa menos “final pessimista de filme da Nova Hollywood” do que me aparenta querer ser. Não quero, porém, discutir supostas intenções aqui, elas não importam. O que discuto é como o filme chega até mim, e a impressão que fiquei é que ao findar de O Agente Secreto o filme de gênero aparentemente esquece que é ficção, que é sonho, que é possibilidade, que é imaginação e se contenta em ser apenas um memorando para quem esqueceu da realidade. O filme terminou quando eu achei que ele estava começando a engatar. Sua (ótima) sequência de clímax, que sequer envolve diretamente o protagonista, soava como uma ponte para um grande final, que nunca veio. Tudo sempre entrecortado com cenas de um salto temporal que pra mim redundantemente só faziam comentar o que já estava sendo discutido na trama principal, com o plus de envolver personagens sobre os quais não se importa - talvez a única personagem de todo o filme pelo qual não consegui me afeiçoar em momento nenhum, possivelmente por sentir que ela não era uma pessoa completa, mas uma ideia de roteiro.
Anos atrás vi Shyamalan dizendo que havia aprendido que o suspense em um filme é como um arco e flecha. Quanto mais você estica a flecha do suspense, mais forte ela deve chegar ao alvo quando soltá-la. A impressão que fiquei era que a flecha havia sido esticada por toda a duração do longa, mas quando solta não teve o impacto que poderia. Compreendo que minha decepção é fruto justamente do filme correr riscos - especialmente por se recusar à explosão de um Bacurau ou do enérgico final de Aquarius, por exemplo. Então que bom que corre riscos, que bom que ousou ir por caminhos inesperados e frustrar parte de seu público. E que triste que dessa vez o público frustrado fui eu. A sensação era que tantas portas foram abertas, tantas pontas foram soltas, tantas ideias de cinema apresentadas, e no fim o filme de gênero terminou, mais uma vez, como um mero comentário de Brasil. Esse Brasil, que frustra, que decepciona, que ignora, que encerra, que amarga, que desvaloriza, que esquece. Só que isso tudo eu já havia entendido ao decorrer de O Agente Secreto. Saí da sessão frustrado, mas desejando desesperadamente rever. Ponto pro filme.



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