- Esta é a segunda parte da série A volta dos que não foram, que analisa como as séries de TV se transformaram nos últimos 10 anos. A primeira parte analisa as modificações no formato e na fórmula possibilitadas pelo streaming. Para ler, clique aqui.

Se você conviveu comigo pessoalmente nos últimos dez anos, é provável que já tenha me ouvido falar de John Landgraf. O executivo é presidente do FX Networks, e um dos nomes mais respeitados e admirados na indústria televisiva norte-americana atualmente. Sob sua alçada, o FX promoveu séries de qualidade e surpreendente constância, sendo a casa de dramas e comédias de prestígio e referência.
É ele o grande responsável pela onda atual de séries antológicas (afinal, partiu de sua cabeça a ideia de transformar American Horror Story em uma, quando Ryan Murphy descobriu que queimou todo o cartucho da história que havia desenvolvido na primeira temporada da atração), mas também foi ele o cara que capitaneou e defendeu algumas das séries mais amadas pela crítica dos tempos modernos.
Justified, The Americans, Sons of Anarchy, Atlanta, What We Do in the Shadows, Fargo, Legion, Better Things, Pose, Xógum, Reservation Dogs, The Bear… a lista poderia continuar. No geral, estamos falando de grandes dramas e grandes comédias que dão um seguimento exemplar ao que foi estruturado na terceira era de ouro da TV. Temos personagens complexos, tramas serializadas profundas e completas, mas arcos episódicos que funcionam para que os protagonistas de fato passem por uma evolução.
A grande briga de Landgraf no contexto em que a Netflix começou a investir fortemente em séries originais era a defesa da qualidade e não da quantidade. Estamos falando de uma época anterior à aquisição da Fox pela Disney, quando o FX ainda estava muito longe de ter o Hulu e o Disney+ como o destino oficial de suas séries no streaming. Portanto, era um canal de TV a cabo tradicional, que sentia de perto a ameaça do streamer que lançava praticamente uma série nova por semana. Um canal de TV não tem como brigar com a mesma moeda.
O que me admira na estratégia adotada por Landgraf para o FX é que o canal permaneceu relevante e acima da média mesmo diante das muitas transformações na distribuição de conteúdo televisivo que testemunhamos nesta década, com a mesma assinatura de trazer séries de prestígio e alto valor de produção. O executivo conseguiu isso não apenas priorizando histórias singulares e criadas por verdadeiros entendedores do formato, mas pautando na imprensa um debate sobre qualidade x quantidade que o favoreceu, e cunhando o termo que definiu a era televisiva: Peak TV.
É necessário esclarecer que estamos falando de um momento em que todo mundo resolveu começar a lançar séries originais. Não eram apenas Netflix e Prime Video entrando no jogo, mas até o History Channel e o canal USA entraram na dança. Para onde quer que se olhasse, havia uma nova plataforma, fosse canal de TV tradicional ou de streaming, lançando suas primeiras séries originais.
Não que isto seja necessariamente um problema. Quanto mais séries, mais empregos e mais interesse na indústria audiovisual. Mas o resultado prático foi uma quantidade tão alta de seriados que o cenário estava fadado a se tornar, eventualmente, insustentável. Em 2021, por exemplo, foram lançadas 559 séries roteirizadas nos Estados Unidos, um aumento de quase 200 séries em relação a 2013, ano em que a Netflix estreou House of Cards.
Landgraf, então, explicava que o foco das plataformas de streaming em quantidade de séries e o gasto excessivo na produção delas levava a um decréscimo de qualidade e lucro. Com uma programação muito mais ampla do que um ser humano seria capaz de assistir, ele previa que o excesso levaria à rejeição. Segundo o produtor, em determinado momento chegaríamos a um número tão grande de séries roteirizadas sendo lançadas anualmente que não haveria mais como crescer, a bolha iria estourar e seríamos forçados a um cenário (em crise) mais razoável – com menos séries sendo lançadas, menos plataformas no jogo e uma média de qualidade um pouco maior.
Mesmo assim, a indústria continuava crescendo e a quantidade de séries também; como recompensa, ganhamos assinaturas mais caras e mais propagandas no meio de nossos programas favoritos.
Foi somente no auge da pandemia de covid-19 que vimos o crescimento dar os primeiros sinais de desaceleração, quando a Netflix começou a apresentar números mais discretos e reportar que perdeu assinantes no balanço trimestral. O número de séries originais lançadas pela plataforma começou a diminuir, à medida que novas plataformas de streaming chegavam no jogo (o Disney+ e a própria HBO Max, por exemplo). Era um sinal de que a conta não batia mais. Se antes a plataforma parecia não se preocupar em gastar rios de dinheiro contratando atores e diretores consagrados do cinema para fazer séries que só seriam vistas pela crítica e seriam esquecidas afundadas no algoritmo, agora as prioridades pareciam ser outras.
Foi nesta época que vimos o boom dos documentários criminais começar a tomar forma. Com as produções interrompidas devido ao distanciamento exigido pela pandemia, as produções feitas majoritariamente com material de arquivo eram mais fáceis de se executar, e vimos o true crime se sedimentar como o fenômeno que invadiu as telas. São produções que preenchem todos os requisitos de uma plataforma como a Netflix: mais baratos de se produzir, com alto poder de engajamento e espalhamento nas redes sociais e atrativos para olhares curiosos; como consequência, ainda se desdobram em grandes coberturas da imprensa, fechando o ciclo que dá mais destaque e visibilidade para o streaming.
Em suas previsões iniciais, Landgraf supunha que a bolha do Peak TV iria estourar quando chegássemos a 400 séries anuais, mas a bolha continuou crescendo para muito além deste número “singelo”. A morte do Peak TV foi decretada "oficialmente" por críticos e analistas em 2024, quando foi detectada uma queda significativa no número de lançamentos em 2023. Segundo estudo da Ampere Analysis, foram 481 séries lançadas naquele ano, 24% a menos que em 2022, quando foram lançadas 633 séries com roteiro – quase duas séries inteiras por dia.
Mas o que realmente matou o Peak TV? Teriam sido as greves de atores e roteiristas, que forçaram a indústria a tirar o pé do acelerador? Ou a estratégia adotada pela Warner Bros. Discovey, quando David Zaslav saiu cancelando filmes e séries a torto e a direita para tentar salvar os cofres da empresa? Ou seria a morte simplesmente o curso natural da coisa, como previu Landgraf desde o início?
Segundo uma reportagem especial da Variety, a conjunção de todos esses fatores foi responsável por jogar a última pá de cal no caixão proverbial do Peak TV. A reportagem constatou que o declínio começou a ser sentido de forma exponencial em 2022, quando a Netflix reportou suas primeiras quedas de assinantes e arrecadação nos balanços trimestrais, incentivando toda a indústria à retração. Mas outros indicadores, desde os desafios econômicos impostos pelo covid até a estratégia de outras concorrentes e a ausência de mão de obra durante a greve, forçaram a indústria a diminuir o ritmo e não o recuperar novamente.
A morte do Peak TV não quer dizer que voltaremos a números pré-streaming de séries lançadas anualmente, mas aponta para um redesenho estratégico das prioridades das produtoras e distribuidoras na hora de autorizar um novo seriado a ser desenvolvido. Lidar com o novo cenário é lidar também com um público com excesso de opções e que sofreu com a paralisia da escolha. Recuperar esses olhos é o grande desafio com o qual a indústria de TV lida atualmente.



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