Bresson e o sofrimento de Mouchette 

Depois de um dia não tão bom, fui convencida (como se precisasse) a assistir um filme. Minha escolha foi Mouchette, um dos filmes que mais queria ver na minha extensa watchlist envolvendo a filmografia de Robert Bresson. Como estava disponível no catálogo da Mubi no Brasil, não pensei muito antes de dar o play, confesso que sou daquelas pessoas que foge das sinopses. Naturalmente, se você já assistiu a esse filme deve saber que meu dia acaba de piorar (ou melhorar) consideravelmente. Depende do ângulo.

Piorar porque o filme é sem dúvidas um dos mais arrasadores que já assisti. Sou uma admiradora do cinema bressoniano, já havia assistido a O Batedor de Carteiras, O Dinheiro, Quatro Noites de Um Sonhador, A Grande Testemunha, O Diabo, Provavelmente e li o livro Notas sobre o cinematógrafo, mas jamais tinha visto Bresson em um lugar tão obscuro e profundamente triste. Mouchette tem apenas 78 minutos de duração e eu acredito que se dá pelo fato de que se fosse mais do que isso, provavelmente não iríamos suportar tamanho pesar.

E melhorar porque, na verdade, o filme me levou a uma reflexão profunda sobre a exploração do sofrimento no cinema. Afinal, existe alguma forma de retratar um sofrimento desse nível em um personagem sem cair em algo simplesmente cruel e exploratório? Especialmente quando falamos sobre um sofrimento tão intrinsecamente ligado ao gênero feminino?

O filme conta a história da personagem-título, Mouchette, uma adolescente de 14 anos que vive no interior da França com uma mãe enferma e um pai alcoólatra. Além dos pais, ela também tem um irmão bebê que está sob a sua responsabilidade a todo tempo. A casa é paupérrima, a cama existe apenas para a mãe, todos os outros habitantes dormem no chão. Na escola, Mouchette sofre bullying pelas colegas e maus tratos da professora, enquanto na rua sofre assédio constante.

Mesmo criança, a protagonista tem a responsabilidade de uma adulta. Não é o pai que busca o leite da mãe que não consegue nem levantar da cama, tampouco o aguardente para os momentos de dor, é Mouchette. Quem carrega o irmão no colo e esquenta o leite para por na mamadeira é ela, também. Mesmo diante de tanta dificuldade e maus tratos, ela também continua a frequentar o ambiente escolar, outra responsabilidade — a única que realmente condiz com a idade.

Em todos os espaços, Mouchette sofre algum tipo de violência. É como se o seu corpo estivesse à disposição justo de pessoas que não têm o mínimo interesse em percebê-la como ser humano. Durante muitos momentos do filme, me peguei pensando em Os Incompreendidos de Truffaut, especialmente sob o ponto de vista da invisibilização da infância e até uma desumanização dessa fase da vida. A abordagem de Truffaut, claro, é muito diferente de Bresson, mas ambos retratam a mesma fase com lentes críticas sobre o tratamento que a sociedade dá a esses personagens.

Nos moldes bressonianos, Mouchette se assemelha a Balthazar, o burro de A Grande Testemunha. Isso pode parecer até repugnante à primeira vista, mas na verdade tem uma intencionalidade que convém: ela é tão desumanizada e passiva diante das violências quanto o burro. Mesmo diante das mais explícitas, ela não tem qualquer ação, apenas reage diante de como o mundo a trata. O máximo que ela consegue fazer, apenas duas vezes, é atirar terra nas colegas de classe do lado de fora da sala e dar duas respostas atravessadas às senhoras que lhe tratam com pena.

Quando recebe um vislumbre de atenção em meio a um parque de diversões e tenta abordar um menino da sua idade, é surpreendida com um tapa no rosto vindo do pai bêbado. A humilhação na frente do rapaz, que não conhecia, é constrangedora e contrasta imediatamente com a leveza juvenil da cena anterior, com a felicidade de Mouchette em um carrinho de bate-bate (por sinal, tinha brinquedo melhor para esse contexto?).

Mouchette - Harvard Film Archive

Bresson instiga quem assiste ao seu filme a pensar criticamente na natureza da ajuda que não é uma intervenção aos abusos diários, tampouco é altruísta. A protagonista não precisa da pena das suas vizinhas ou de que quer que seja, precisa de um acolhimento que parece muito distante da sua realidade. Ao seu redor está claro que não existe real interesse em mudar a sua situação, ela permanece onde está e, se dependesse disso, ficaria ali o tempo que fosse.

Mas, o “segredo” que faz o filme de Bresson muito diferente de um Cafarnaum de Nadine Labaki, por exemplo, é que o diretor mantém uma distância justa da personagem ao desdramatizar a ação. Essa é uma característica bressoniana conhecida, formalista e fiel à percepção de que quanto mais objetiva e simples era uma cena, maiores as chances de conectar o indivíduo com a experiência humana (em Notas sobre o cinematógrafo, Bresson fala mais sobre isso e sobre o que acredita ser o cinema, recomendo).

Prime Video: Cafarnaum

Então, quando Mouchette chora, não existe um interesse da câmera em aproximar-se, nem da atriz em dramatizar a ação. As lágrimas simplesmente escorrem e o fato de acontecer uma única vez em todo o filme, após uma cena brutal de abuso sexual, não precisa dizer mais nada. É o ápice da tristeza da protagonista, do seu limite físico e mental. É devastador justamente por não precisar explorar mais aquilo que já é tão terrível.

Quando mais jovem, sempre dizia que não me interessava por filmes que faziam chorar, mas não era cinéfila nem crítica de cinema e não entendia ao certo que o que não gostava, na verdade, era manipulação barata cuja única intenção era levar ao choro. Com esse filme (e tantos outros), Bresson me fez entender melhor o que realmente me interessa em narrativas devastadoras é algo que pode ir além da emoção pela emoção tocando-nos, por exemplo, a ponto de pensar em nossa própria ética.

A partir do momento em que um filme faz isso por meio da emoção, pode ter certeza que você não vai lembrar dele apenas pelas lágrimas que escorreram descontroladamente ou do gosto amargo que deixou, você vai lembrar do que a obra possivelmente propõe em todo um mar de desesperança. Por mais que eu tenha gostado de filmes como Dançando no Escuro de Lars Von Trier, hoje me questiono se aquele sofrimento era mesmo algo interessante ou apenas torturante. Só revendo para saber.

Dançando no Escuro: 20 anos do musical mais triste do mundo – Persona |  Jornalismo Cultural

Também me peguei refletindo sobre outro sofrimento feminino do cinema recente: Blonde de Andrew Dominik. O filme que contou parte da história de vida de Marilyn Monroe, mas com lentes bastante cretinas ou misóginas, chame como quiser, foi alvo de todo o meu ódio na época. Não sei como me sentiria agora. É difícil pensar sobre o sofrimento de personagens femininas na história do cinema porque ao longo de mais de 100 anos fomos alvos de tantas violências sob o olhar dos homens, dentro e fora das telas, que não tem como quantificar as marcas que isso deixou no cinema de hoje.

(Por um lado, tudo isso também me faz pensar que um filme como O Mundo É o Culpado de Ida Lupino foi mesmo de enorme importância, quanto mais o tempo passa, mais resiste à prova do tempo. Um filme dirigido por uma mulher e que traduziu, em 1950, o pavor que antecede um episódio de estupro tanto quanto a devastação que o segue. Talvez assunto para um próximo texto?)

No fim das contas, acho que existem formas e formas do cinema retratar a dor do outro. Tem diretores que irão explorar ao máximo o que há de mais devastador em suas narrativas, como se estivessem realizando uma tortura parte a parte, usarão a abordagem mais dramática e a atuação mais teatral possível para concluir seu objetivo. Enquanto outros, como Bresson, permanecerão com a câmera sem mover um centímetro sequer mesmo em cenas teoricamente irresistíveis a um close-up.

Crítica | O Mundo é Culpado - Plano Crítico

E é justamente aí que reside a genialidade e a coragem do diretor, se você me perguntar. Bresson realmente não filma a dor de Mouchette para nos chocar ou despertar compaixão passageira, mas para nos confrontar com algo muito mais incômodo: a própria condição humana quando esvaziada de sentido, de ternura e de pertencimento. Sua câmera observa, nunca invade (algo como a justa distância que Eduardo Coutinho propunha de seus entrevistados) e no final, não há catarse nem alívio. Há silêncio, e é nesse silêncio que a tragédia de Mouchette reverbera — cruel, solitária e devastadora.

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