It’s Never Over: o documentário musical biográfico e a sua função primordial  

“Love, anger, depression, joy and dreams…” - Jeff Scott Buckley

Havia um garoto, que era muito estranho e encantador. Dizem que ele vagava para longe, muito longe. Que percorria a terra e o mar. Um pouco tímido e carregava um olhar triste, mas muito sábio ele era. E então, em um dia, um dia mágico, ele passou pelo meu caminho. E enquanto falávamos de muitas coisas - de tolos e de reis - isso ele me disse:
A maior lição que você irá aprender é simplesmente amar e ser amada em troca.

Esse garoto cresceu, viu seu pai partir desse mundo jovem demais, por overdose de heroína combinada com morfina, quando tinha apenas 28 anos. As comparações com Tim assombraram Jeff Scott até que, no ano de 1991, no dia em que uma homenagem foi feita ao pai, na Igreja Saint Anne's, no Brooklyn, em Nova York, com todos os amigos famosos da música ali presentes, ele exorcizou esse fantasma e usou sua voz. Cantou como um anjo caído, com um timbre e um alcance único, assombrou a todos ali presentes.

Ele era Jeff Buckley, talvez o cantor e compositor mais antológico do final do século 20, que se tornou mito no momento em que entrou num rio e morreu tragicamente, por afogamento, em 1997. A documentarista Amy Berg, tendo acesso a imagens inéditas, depoimentos e relatos do círculo íntimo de Buckley, além das mensagens exclusivas que ele gravou e deixou registradas em diários junto a desenhos feitos de próprio punho, compõe a materialidade do documentário “It’s Never Over, Jeff Buckley” que pude conferir nesta quadragésima nona edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Apesar da linearidade da linha temporal que a documentarista escolhe para biografar o seu objeto, a elipse que Berg constrói ao comparar a carreira meteórica e melancólica de Jeff Buckley à do pai, Tim, provoca uma emoção muito genuína que é fundamentada pela presença on camera, de Mary Guilbert, a mãe dele. A forma com que, sem ceder a sensacionalismos, é contada a história do relacionamento de Jeff com ela, da ausência do pai, da vida com as namoradas Rebeca Moore e Joan Wasser, da convivência com os amigos e companheiros de banda, Matt Johnson e Michael Tighe, durante as turnês do álbum “Grace”, criam uma ambiencia muito íntima que permite acessar o ser humano que o musico foi.

Eu acredito piamente que a exaustão do formato ‘documentário biográfico’ ou mesmo ‘filme biográfico’ ainda mais quando se mescla ao subgênero ‘biografia musical’ se deve em muito a falta de criatividade ao se abordar vida e obra de uma personalidade artística. Eu quero, minimamente, aprender algo sobre aquela pessoa, ainda mais se for alguém que eu admire. Quero que uma faceta nova seja revelada ou uma faceta conhecida seja revelada. O filme tem que ter algum propósito mais ambicioso, ir além do simples “esta é a sua vida” ou “arquivo concorrencial” que reconta a história da pessoa famosa do Nascimento até a morte ou até o estágio atual da vida; da forma mais linear, quadrada e aborrecida que existe.

À medida em que os primeiros dez ou quinze minutos de “It’s Never Over, Jeff Buckley” transcorriam, eu fui me movendo na cadeira da sala número dois do espaço Petrobrás de Cinema um pouco irrequieta. Não queria ver uma cinebiografia musical televisiva mas sim um filme sobre um dos meus cantores do coração, compositor de canções que movem a minha alma melancólica como a dele próprio era. Mas nesse instante, Berg passou a usar um dispositivo que trouxe uma voz muito forte e própria ao filme: a própria voz de Jeff Buckley, em trechos gravados pelo próprio em um gravador de fita, que deram vida aos seus pensamentos mais angelicais e mais obscuros, ilustrados por desenhos rascunhados por ele que foram ocupando o ecrã. Lembrei no ato de um dos meus documentários preferidos, sobre outro cantor trágico: “Cobain - Montage of a Heck”, de Brett Morgen, que mergulha na psique de Kurt a partir de seus diários repletos de desenhos, poemas e pensamentos.

E talvez a faceta do autor de letras como “maybe I’m too young, to keep good love from going wrong” que tenha me impressionado como passageira nessa jornada audiovisual seja a pulsão de vida descoberta nas reminiscências deixadas por Jeff Buckley e nas lembranças das ex-namoradas e até de colegas de ramo como Aimee Mann, que reconta um momento em que ele queria fazer sexo com ela logo após o rompimento de uma relação amorosa, enquanto ela preferia ter um outro tipo de ligação naquele momento.

Desmistificar que Buckley se afogou pois tentou suicídio talvez seja um dos melhores aspectos de “It’s Never Over, Jeff Buckley”. Sim, ele lidava naquele momento com a exaustão de dois anos e meio em turnê pelos Estados Unidos e pelo mundo divulgando “Grace” e também com a pressão da gravadora para que ele gravasse, no estúdio improvisado numa casa em Idaho, o próximo álbum que o mantivesse como um dos principais artistas do rock, mas ele não queria morrer. E na última gravação que fez para Mary, onde a perdoa (e aí foi impossível reter as minhas lágrimas de pesar, já que as de emoção já tinham caído assim que o vídeo raro da primeira apresentação de Mojo Pin, no bar Sin-é, ganharam a tela do cinema) por descaso com ele e por muitas vezes, ter sido mais filha do que mãe. Jeff tinha uma compressão muito grande do que era ser uma mulher criando um filho sozinha e como o mundo dificultava bastante. Essa e outras sensibilidades fizeram dele uma pessoa que faz falta no mundo da forma com que não se escondia dos seus demônios e comunicava suas glórias e dores através da música.

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