Quando a tela vira espelho 

Quando eu era criança e já ávida consumidora de produtos audiovisuais na forma de desenhos animados e séries, eu nunca me vi representada na tela. Por causa disso, passava meu tempo livre imaginando como seria se eu entrasse nas história a que assistia: seria mocinha ou vilã? Com quais personagens interagiria? A trama teria de mudar com minha presença? Julgando-me muito importante, acreditava que sim, eu era capaz de mudar o mundo - nem que fosse o fictício.

Quando eu tinha 12 anos, numa manhã de domingo, zapeando pelos canais, parei no Cartoon Network para dar uma chance a um desenho que nunca havia visto: O Acampamento de Lazlo. Aquele macaco-aranha - brasileiro ainda por cima, a sinopse insistia em dizer - virava o acampamento do título de cabeça para baixo. Logo fiquei fissurada nesse desenho e desejando ser mais alegre e anárquica como Lazlo, mas ele não era o personagem com o qual eu mais me identificava.

Rino era descrito como um rinoceronte-anão albino, de pouca prosa mas muita perspicácia (na figura acima, é ele quem aparece acenando). No episódio “Rino Prodígio”, o chefe do acampamento descobre literalmente isso: que Rino é um prodígio em várias áreas, incluindo raciocínio lógico, pintura e música. De repente, o estalo: Rino era como eu, quietinho mas poderoso.

Dois anos depois de começar a assistir a O Acampamento de Lazlo - a série teve cinco temporadas - uma nova série, desse vez live action, estreou: The Big Bang Theory. Agora me dou conta de que foi também numa manhã de domingo, zapeando pelos canais, que conheci Leonard, Penny e Sheldon. Foi diversão à primeira vista, e logo viria a revelação.

Conforme eu assistia à série, mais impressionada ficava com um detalhe: nunca antes havia me sentido tão representada num produto audiovisual. Eu era igualzinha ao Sheldon, parecia até que os criadores e roteiristas espionavam minha vida para criar as situações e falas do personagem. Como ele, eu era inteligente, mas com pouco traquejo social. Brilhante, mas cheia de manias.

The Big Bang Theory virou minha série de conforto nos anos difíceis de bullying no Ensino Médio. Eu me via em Sheldon e via a esperança de um dia ter tudo: sucesso, reconhecimento, amigos, amor. Foi só lá pela terceira temporada que li numa revista que Sheldon poderia ser considerado um personagem com Síndrome de Asperger, hoje um termo em desuso. Agora diríamos que Sheldon está no espectro autista.

Autista, eu? Fazia sentido, de acordo com a revista, que ainda mencionava que as meninas sabiam mascarar os sintomas para se adaptarem ao meio e sofrerem menos preconceito. Guardei a possibilidade comigo.

The Big Bang Theory ainda estava sendo exibida - afinal, teve incríveis 12 temporadas - quando me deparei com a chance de ter um diagnóstico verdadeiro, por profissionais especializadas. E foi assim que cheguei ao meu diagnóstico aos 24 anos. Mas ainda não me via representada nas telas.

Em 16 de outubro de 2025, tudo mudou. Estreou nos cinemas brasileiros um filme francês chamado “Uma Mulher Diferente”. Diferente porque é como eu. Considerada hiperfocada e cheia de manias pelo namorado, a jovem Katia, interpretada por Jehnny Beth, se vê frente a frente com a possibilidade de estar no espectro autista quando faz uma pesquisa profunda para uma matéria de jornal. Sua jornada, como a de todas nós mulheres no espectro, é de descobrimento e autoconhecimento.

Demorou muito para que a tela que eu tanto amava virasse espelho. “É tudo o que sou, tudo o que sempre fui”, diz Katia. Representatividade está na ordem do dia, e espero cada vez mais ver pessoas como eu nas telas.

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