A experiência Cassavetes 

Me lembro como se fosse ontem da primeira vez que assisti a um filme do John Cassavetes, “Uma Mulher Sob Influência” foi o primeiro filme que assisti em 2024, em uma tarde de janeiro, quando o sol deixava a sala de casa e a escuridão entrava. Quando filmes são realmente marcantes, eu geralmente me recordo de como estava o tempo quando assisti, o fim de tarde contribuiu com a melancolia do momento.

Me mantive imóvel por um tempo, pensando na visceralidade da direção combinada à atuação absolutamente genial de Gena Rowlands — havia entendido finalmente a posição que a atriz costumava ocupar nos rankings de outros atores. Foi o momento em que percebi que talvez estivesse perdendo algo sem Cassavetes e realmente estava.

Ao mesmo tempo, tenho uma teoria de que quando estamos prontos, o filme certo nos acha. Ou achamos o filme certo para nós? No cinema, um momento certo pode mudar a percepção de tudo. A depender da altura da nossa vida e das vivências que acumulamos, filmes podem se transformar por completo. Eu passei por isso quando falei sobre Titanic anos depois de ser apenas uma pré-adolescente com má vontade para romances, hoje percebo o filme de James Cameron como uma joia tão sagrada quanto o colar de Kate Winslet.

John Cassavetes é o caso de um diretor que, talvez, se tivesse visto dois anos antes, não me tocaria como tem tocado. Há cinco anos, talvez tivesse estranhado a movimentação da câmera, a mise-en-scene totalmente guiada pelos atores, a corporalidade e a sua importância na criação dos seus instantes tão plenos. Mais que isso, talvez no primeiro filme que vi “Uma Mulher Sob Influência” pudesse não ter entendido a urgência daquela mulher, o seu sofrimento psíquico, intrafamiliar e apavorante.

A Woman Under The Influence 023

Este filme, sua obra-prima mais famosa, está sempre no hall de favoritos de atores e diretores. Quando na década de 70, a maioria dos Estados Unidos estava focada nos nomes da Nova Hollywood, Cassavetes transformou o que seria uma peça de teatro, originalmente, em um dos filmes mais interessantes sobre a chamada american working-class que existia até aquele momento.

Com baixíssimo orçamento, “Uma Mulher Sob Influência” consolidava Cassavetes para sempre como um precursor do cinema independente americano e lhe dava total liberdade criativa para falar sobre o que mais lhe interessava: a experiência humana. Ao ator-diretor-roteirista não interessavam os espetáculos grandiosos, nem personagens ou temas de grande importância, mas sim as pessoas erráticas e os pequenos presentes que suas ações desencadeiam em meio à banalidade do cotidiano.

Ademais, ele tinha um fascínio particular pelo ambiente familiar e por um sentimento em específico, a solidão. Mesmo em volta de parentes, amigos, mulheres ou fãs, os personagens de Cassavetes guardam no seu íntimo o semblante de uma pessoa verdadeiramente sozinha. Ainda sobre Uma Mulher Sob Influência, por exemplo, é quase uma unanimidade que a história de Mabel, como uma mãe que aos poucos é levada à loucura pela solidão do trabalho de cuidado diário, dentro do seio familiar, é uma obra brutal de se assistir e ao mesmo tempo fascinante justo pelo que nos provoca.

Por que temos sentimentos tão conflitantes pelos seus personagens? Por que a atuação de Gena Rowlands na fatídica cena da sala em Uma Mulher Sob Influência é tão inesquecível? Por que a cena do espelho em Noite de Estreia provoca tanto arrepio? Por que a cena do telefone vermelho em Amantes provoca um vazio tão profundo (do you believe that love is a continuous stream)?

Após Amantes (Love Streams), que se tornou meu filme favorito dele até o momento, me peguei pensando que Cassavetes entendia algo sobre a experiência humana que o cinema sempre vai precisar: há mais verdades nas imperfeições. Sua experiência prévia como ator o levou a dirigir filmes sem necessitar do controle absoluto das ações para obter a verdade da cena, a verdade da trama.

Cassavetes irá delegar ao ator a responsabilidade de fazer parte da construção do filme e, por tal motivo, a sensação é de que estes que guiam a câmera — não o contrário. É uma sensação única assistir aos seus filmes justo porque a mise-en-scene é construída totalmente ao entorno das ações dos personagens e você nunca sabe qual caminho seus olhos vão percorrer em seguida.

Para entender a encenação no seu cinema, é preciso compreender que tudo que os personagens de Cassavetes têm é o agora. Assim como no teatro, toda noite o ator é capaz de entregar um novo espetáculo e, no cinema, cada novo take é uma oportunidade de fazer algo diferente, para Cassavetes toda vez que a câmera liga pode-se construir novas camadas, significados e interpretações de uma mesma cena e dos seus personagens.

Nesse sentido, seu cinema se constitui pela imagem-tempo, nos conceitos de Deleuze, uma maneira de filmar a ação que valoriza a experimentação das emoções e o tempo real em que estas acontecem, em detrimento da usabilidade da cena à serviço de uma lógica racional ou motivada. Em outras palavras, o que provoca a duração de uma cena tem mais relação com o quanto de impacto quer provocar do que o quão útil será para a ação subsequente. Isso é determinante para um cinema profundamente visceral.

Enquadramentos próximos e com câmera instável, irão submeter o espectador a uma experiência mais íntima com os personagens enquanto a câmera abre geralmente para enfatizar os ambientes decadentes, comuns ou solitários em que eles se inserem. Em Amantes, a reação da personagem de Gena Rowlands na sala de audiência é um exemplo claro disso. A câmera busca as reações da atriz enquanto a câmera abre para enfatizar o desconforto dos outros personagens e a impessoalidade daquele ambiente em contraste com o nível de profundidade das suas reações.

Love Streams: A Fitful Flow | Current | The Criterion Collection

Em Noite de Estreia, o apartamento de Myrtle é estranhamente vazio. Os móveis parecem não pertencer àquele ambiente de tão pequenos e se cria um contraste muito desproporcional, mas a câmera a princípio não tem interesse em evidenciar isso, ela espera o diálogo entre Myrtle e Maurice se encerrar para então abrir o plano, enfatizando a solidão daquela mulher na vida fora dos palcos, completamente perdida naquele espaço tão vazio e amplo.

Opening Night”: duas horas (e meia) na vida de uma mulher – À pala de Walsh

Em The Killing of a Chinese Bookie, a cena em que Cosmo Vitteli (Ben Gazzara) realiza uma audição com uma nova dançarina em potencial tem um enquadramento que enfatiza sua solidão frente àquela atividade. O plano o coloca no limite inferior da tela e a dança é o menor dos interesses ali, temos um sujeito completamente atormentado pela sua situação, afundado em dívidas e em relações frustradas. É um filme noturno, melancólico, que floresce na escuridão da noite, dos bares e das músicas.

A textura granulada das imagens e a estética suburbana decadente conversam com o cinema estadunidense da década de 70 de maneira diferente, não é como nos filmes de Coppola ou Scorsese, nos quais mesmo a sujeira preservava uma nova ideia de glamour, em Cassavetes tudo isso era parte de uma atmosfera lúgubre. O pessimismo é óbvio, mesmo quando dotado de algum vislumbre de afeto e esperança, enquanto o amor é vivido na inconstância entre o querer desesperadamente ser amado e o ímpeto de rejeitar o afeto que acreditam não merecer.

THE KILLING OF A CHINESE BOOKIE (1976) | One Perfect Shot Database

Em outras palavras, é um cinema centrado em pessoas, do início ao fim. Dos sentimentos que provavelmente Cassavetes compartilhava com sua musa e esposa, Rowlands, com o cinema, com o ofício da atuação e sua percepção da sociedade à época — não muito diferente do que vemos hoje. Em um mundo tão esquisito onde robôs e algoritmos estão sendo seriamente considerados como artistas, que falta faz um cinema onde a experiência humana é a maior dádiva.

E se você ainda não viu nenhum filme do Cassavetes, nunca é tarde demais para começar.

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