Dogman: um excelente "trabalho em desenvolvimento"

Spoilers

Luc Besson teve sorte com O Profissional, enquanto Imensidão Azul e O Quinto Elemento permanecem como obras que destacaram seu talento criativo durante o ápice de sua carreira.

Depois dos anos 50, a produção criativa de Luc Besson, exemplificada por Dogman, reflete seu atual nível de criatividade. Apesar de conter frases bem elaboradas, o filme carece de capítulos coerentes e encontra dificuldades para manter o charme devido a uma trama desconexa e ilógica, apesar das intenções sofisticadas.

No geral, o filme exibe pontos fortes e fracos discerníveis, oscilando entre fornecer entretenimento leve e explorar preocupações humanísticas. A obra equilibra o espetáculo de um filme de gênero intrigante e exagerado e uma linguagem visual precisa, tornando-o atraente para um amplo público comercial.

Besson queria contar bem uma história, mas aos poucos perdeu o controle e a coordenação.

1. Luc Besson está sempre interessado em criar milagres

A história de Dogman é baseada em uma notícia verdadeira que Luc Besson recebeu há muitos anos: um pai trancou cruelmente o filho de 10 anos e um cachorro em uma jaula durante anos. Quando a polícia finalmente descobriu a criança, ela só conseguia andar de quatro, havia perdido a capacidade de falar e não entendia as normas civilizadas da sociedade humana.

É claro que o diretor manteve os aspectos cruéis e bizarros da história, mas reescreveu completamente o final trágico, guiando-o para uma história de conto de fadas que transcende a lógica convencional.

Luc Besson está sempre interessado em uma história que não é um conto realista brutal, mas, sim, uma história cheia de interpretações ilimitadas, com diversas possibilidades comerciais e narrativas, satisfazendo seus interesses de contar histórias em alegorias religiosas.

Nessa narrativa, o pai e o irmão mais velho servem como símbolos dos beneficiários da autoridade patriarcal influenciada pela cultura religiosa. Em contraste, Douglas encarna um indivíduo que sofreu abandono, violência e marginalização por resistir à autoridade patriarcal. O filme vai além de retratá-lo simplesmente convivendo com cachorros; deliberadamente emprega seu irmão colocando faixas para transmitir que Douglas se tornou um personagem marginalizado, abandonado em certo sentido, até mesmo por Deus.

No entanto, de maneira inteligente, a simetria espelhada das bandeiras também cria um duplo sentido religioso-cultural. Ou seja, a comparação entre "homem-deus" e "homem-cachorro". Nessa cena, Douglas, em uma perspectiva completamente contrária ao pai e ao irmão, desviando-se do divino, conclui pela primeira vez uma nova interpretação da religião. Portanto, "homem-cachorro" também pode ser entendido como a compreensão única de Douglas sobre Deus.

Após essa brincadeira entre os irmãos, Douglas começa a mostrar como um milagre sua capacidade de se comunicar com os cães. Quando o pai se aproxima da jaula com uma arma, todos os cães uivam em sincronia com as emoções de Douglas, e então Douglas completa um ritual simbólico de martírio de maneira fortemente simbólica, realizando seu primeiro milagre, comunicando-se com os cães e convocando a polícia.

Abandonado pelo pai e pelo irmão, Douglas opta por se relacionar com os cães em seu modo de vida, vendo-os como companheiros dispostos a viver e morrer com ele. E quando ele percebe que seu amor por Salma não passava de um sonho, o filme mais uma vez escala os milagres para uma dimensão mais exagerada – da noite para o dia, Douglas foge do abrigo de animais com todos os cães e entra oficialmente nos dias em que é visto como o cachorro-deus por moradores de rua e gangsters, convivendo completamente com cachorros.

O motivo para chamar isso de "milagre" é porque Luc Besson claramente não quer explicar de uma forma muito realista como Douglas é capaz de se comunicar com cães e comandá-los. Em vez disso, após tramas importantes, ele mostra diretamente a habilidade de Douglas e sua evolução.

Em vez de ser um filme sobre a relação emocional entre cães e humanos, retrata os conflitos e contrastes entre cães e humanos em termos de valores e padrões emocionais.

Para Douglas, o sentido de identidade que ele deriva dos cães é muito mais forte do que aquele que ele obtém dos humanos. Esses cães são mais como extensões de seus sentidos, suas pernas substitutas e derivados de sua vontade.

As duas cenas de enganar os gangsters apresentam até mesmo essa fusão de homem e cachorro como um milagre de maneira exagerada. Douglas demonstra sua habilidade de se comunicar com cães através do telefone e conspira com eles em um ringue de luta mal iluminado, implantando estratégias para lidar com os gangsters. Quando esses milagres atingiram um estágio completamente irreal e se tornaram uma forma de superpoder, isso significa que a segunda metade do filme entrou no reino de um filme de super-heróis.

Contudo, no centro da história, Luc Besson define um personagem que está completamente fora do modelo de heroísmo norte-americano – um personagem que, seja um herói ou um anti-herói, consciente ou inconscientemente se torna um guia ou praticante de uma determinada ideologia. Mas a personalidade e a vida de Douglas apontam para um vazio completo.

Seus milagres e superpoderes são totalmente utilizados para autopreservação e satisfação de suas necessidades psicológicas, a ponto de até o roubo de carros ser visto como mero entretenimento. A falta de propósito é o aspecto mais interessante desse personagem e também o aspecto de maior sucesso na interpretação dele por Luc Besson.

Ao contrário dos super-heróis ou anti-heróis, Douglas está constantemente se alienando do mundo externo e se recusando a enfrentá-lo. Para ele, pode não haver muita diferença entre ser uma drag queen e ser um super-herói que derrota a máfia; ambos são jogos de RPG construídos com base em seus próprios talentos mágicos. E como diz a psicóloga no início, a interpretação de papéis é sempre uma forma de encobrir e evitar certos problemas como a falta de amor.

No final da história, ele parece encontrar na terapia uma compreensão e aceitação do amor falsa e onírica. Quer as ações da psicóloga sejam por dever ou por cuidado pessoal, é provável que sejam as raras, se não as únicas, vezes em que Douglas foi ouvido ao longa de sua vida.

Essa também é a tragédia desse personagem – a compreensão e a empatia que procurava em sua confissão acabaram sendo alcançadas em uma relação muito especial e distorcida.

Entretanto, independentemente das circunstâncias, ele completa a confissão e até percebe, talvez pela primeira vez, sua capacidade de amar e de ser amado. Quando Douglas aponta para o médico que ambos são pessoas envoltas em dor, o filme segue com uma reviravolta bem-elaborada, revelando que o médico realmente tem muitos traumas familiares.

Então, depois dessa catarse, Douglas escolhe uma forma completamente anti-heróica e antirreligiosa de acabar com tudo. O momento em que ele exibe publicamente um milagre no filme, em vez de descrever ao médico o quanto ele é incrível, é justamente o momento em que ele escolhe abraçar a morte.

No momento final, ele se torna Jesus na cruz, realizando milagres com luz e sombra, e depois deixa o mundo em meio ao apoio de inúmeros seguidores (cães) – esse ato nega fundamentalmente os falsos crentes como pai e irmão, e não Deus.

Em nome de Deus você me julga e me abandona, então em nome de Deus eu faço milagres e me torno Deus, negando o fundamento de sua fé. Somente depois de renunciar completamente a qualquer desejo ou expectativa de vida é que Douglas ousa optar por buscar seriamente vingança e resistir contra pai e irmão, negando o destino trágico que eles lhe impuseram ao tirar a própria vida.

2. Um narrador não autêntico

No entanto, as falhas de Dogman foram basicamente reveladas na análise que fiz acima – para contar bem essa história, o roteiro de Luc Besson foi escrito deliberadamente demais. Questões LGBT, indivíduos marginalizados, pessoas com deficiência, vítimas de violência doméstica...as questões de identidade de Douglas são, sem dúvida, altamente modernas e atuais, mas o diretor opta por contar essa história em um modo narrativo extremamente clássico: o narrador e o protagonista sentam-se diante do público e contam suas experiências de vida.

Antes de Dogman, provavelmente já fazia muito tempo que um diretor de cinema comercial não usava uma forma tão retrô para contar uma história. Luc Besson nem mesmo projetou muitas reviravoltas e enfeites para essa estrutura narrativa de "bate-papo", mas tentou fazer com que essa estrutura narrativa servisse à sua função mais básica: atrair o público para a história.

Esse também é o maior problema do filme: a história é forte, mas o desenvolvimento dos personagems é fraco. O avanço de muitos pontos-chave da trama é quase inteiramente impulsionado por cenas encenadas que são espetaculares.

Por exemplo, as cenas de Douglas sendo abusado pelo pai e pelo irmão são reduzidas a momentos-chave fragmentados – Douglas vendo o pai e o irmão abusando do cachorro, protegendo o cachorro e sendo descoberto pelo pai; sendo trancado em uma jaula, traído pelo irmão; seu pai atirando nele e o incapacitando; ele enviando o cachorro para encontrar a polícia para prender o pai e o irmão e, finalmente, escapar.

É evidente para o público observar uma lacuna significativa na caracterização e nas motivações dos personagens nesses pontos episódicos da trama. O pai e o irmão permanecem personagens quase simbólicos o tempo todo, deixando a dúvida sobre os motivos da crueldade do pai e da falta de misericórdia do irmão. Consequentemente, os espectadores se veem assistindo ao enredo acelerado do filme e aceitando passivamente o design simbólico do personagem.

Tratamento semelhante também fica evidente nas cenas da multidão perseguindo Douglas e nas cenas emocionantes entre Douglas e Salma. Além de Douglas, os personagens coadjuvantes nessas cenas só podem ser descritos como fugazes. O público nem sequer tem tempo para entender a lógica implícita a muitos de seus comportamentos e atitudes antes que sua atenção seja capturada por outra ação acelerada ou história de amor inventada pelo diretor.

Essa fraca dimensão de desenvolvimento dos personagens coadjuvantes está intimamente relacionada com a estratégia narrativa escolhida por Luc Besson. Se relembrarmos todo o filme, vamos descobrir que as histórias desses personagens coadjuvantes são quase todas contadas por Douglas à psicóloga.

A psicóloga é a única personagem do filme apresentada a partir de uma perspectiva de terceira pessoa, independente do ponto de vista de Douglas. Como segunda protagonista do filme, sua vida, família e suas dores são retratadas com muito mais riqueza em comparação a outros personagens.

Assim, podemos simplificar ainda mais toda a história como um dueto entre Douglas e a psicóloga, em que todos os outros personagens do filme são essencialmente a percepção e a imaginação de Douglas. As histórias do pai, do irmão, de Salma, do chefe da máfia e de outros que nós, como público, conhecemos, são todas apresentadas através da interpretação subjetiva de Douglas.

Em outras palavras, nas sessões entre Douglas e a psicóloga, essas diversas histórias – que compõem os principais componentes do filme e as principais partes do diálogo entre Douglas e a psicóloga – podem ser vistas como narrativas pouco confiáveis na conversa entre um paciente e um psicólogo.

Portanto, os chamados milagres mencionados anteriormente, a rigor, só são apresentados uma vez, quando os cães salvam Douglas do centro de detenção e chegam à igreja. Apenas essa colaboração entre humanos e cães não faz parte dessas "narrativas não confiáveis", mas é apresentada a partir de uma perspectiva objetiva de terceiros.

Uma das principais razões pelas quais muitos espectadores consideram esse filme parecido com Coringa talvez seja porque o "Coringa" também usa truques narrativos semelhantes. Os médicos do Asilo Arkham tentam descobrir a verdade da história da boca do Coringa. Mas quando a verdade só pode ser revelada através das palavras desse personagem complexo, isso significa que não podemos mais compreender e conhecer a verdadeira história.

A única diferença é que, devido aos traços de caráter do Coringa, ao significado simbólico e à sua familiaridade com a cultura popular, mais espectadores rejeitam ou pelo menos questionam as histórias que ele conta. Contudo, Luc Besson se esforça para fazer o público acreditar antecipadamente que o que Douglas diz não é falso.

Ao se livrar gradativamente do disfarce diante da psicóloga, alcançando a reconciliação e confirmando o entendimento mútuo, a trama de realizar milagres mais uma vez transmite o apelo: "Por favor, acredite em mim, o que eu digo não é falso!". Esse tom defensivo permeia o filme, com ênfase especial quando Douglas, interpretando uma drag queen, canta e muda inesperadamente para a trilha sonora original.

A rapidez dessa manipulação sonora só pode ser racionalizada pela noção de que "tudo isso faz parte da narrativa e da fantasia de Douglas". Apresentar a realidade objetiva da seção de canto e dança com a trilha sonora original é, sem dúvida, um erro desajeitado e superficial de processamento audiovisual. Temos motivos para acreditar que Luc Besson não cometeria um erro tão fundamental. É mais adequado interpretá-lo como Douglas imaginando a antiga beleza de sua atuação em sua narração.

Embora a história seja incrivelmente bela e cheia de elementos de conto de fadas, o significado da defesa e a forte narrativa subjetiva misturada na atmosfera do conto de fadas mais uma vez disfarçam a verdadeira intenção do filme.

No filme, Douglas aos poucos tira seu disfarce diante da psicóloga. Entretanto, Luc Besson, como contador de histórias, ainda opta por restringir fortemente o corpo principal da história a essa narrativa subjetiva, evitando a intervenção de uma perspectiva verdadeira e apresentando a história de uma forma diferente.

Talvez a incapacidade de encarar verdadeiramente a si mesmo, a hesitação repetida entre o gênero cinematográfico e a expressão pessoal, e a dependência de enredos espetaculares para encobrir lacunas lógicas na trama tenham confundido a fronteira entre sinceridade e habilidade há muito tempo. Essa é a verdadeira apresentação interior de Luc Besson, que viveu os altos e baixos durante muitos anos após o movimento "#MeToo".

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