Como Extermínio: A Evolução transforma saga zumbi em poema sobre a banalização da violência

A primeira cena de Extermínio: A Evolução é de causar certa estranheza. O público ouve a música clássica de um programa infantil marcante do início dos anos 2000 antes de ver as imagens, que por um segundo dão a impressão de estarmos assistindo ao filme errado. Mas logo entendemos e nos situamos; estamos acompanhando um grupo de crianças reunidas em um quarto e olhando fixamente para uma TV de tubo – que tenta, sem sucesso, os distrair dos gritos desesperados dos adultos e da destruição que toma conta da realidade da porta para fora.

O esforço para blindar aquele grupo inocente do início da epidemia da raiva que transformou britânicos em zumbis logo prova ser em vão, como já mostrou o filme Extermínio (2002), primeiro da saga que agora ganha uma sequência moderna. Mas a tentativa, embora falha, é perfeitamente humana – e justamente o que impulsiona todo o novo longa que reúne Danny Boyle e Alex Garland. A história, agora com o vírus consolidado e a quarentena ainda em pleno vigor no Reino Unido, é uma reflexão poderosa e pertinente sobre a repetição irracional dos ciclos históricos de violência – e como eles afetam gerações a fio.

A trama avança no tempo para 28 anos depois (28 Years Later) do início da epidemia, e mostra agora uma realidade que, mesmo devastada, encontrou uma forma de se consolidar – as pessoas criaram meios de sobreviver com os infectados no Reino Unido em uma quarentena forçada, em comunidades fechadas e seguras por cercados de madeira e armamento rudimentar. Se visualmente o novo filme se distancia bastante do primeiro (28 Days Later), é porque ele não é exatamente uma continuação da história iniciada com Cillian Murphy perdido nas ruas de Londres. Trata-se de uma extensão daquele universo, uma conexão espiritual que conta com novos personagens, mas um simbolismo igualmente devastador. O ator de Oppenheimer volta em futuras sequências já confirmadas.

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É por isso que a história se concentra na primeira aventura de Spike (Alfie Williams, estreante excelente e bastante seguro no papel), um garoto de 12 anos que parte com o pai para fora da comunidade pela primeira vez, para uma caçada no continente. Exímio com arco e flecha, o menino irá encontrar os infectados e colocar suas habilidades à prova, algo que normalmente é reservado para jovens acima dos 14 anos. Mas Jamie (Aaron Taylor-Johnson), o pai, está convencido da capacidade do filho, e os dois sobrevivem juntos a uma noite em campo aberto, longe da proteção de seu povo, com Spike matando seus primeiros infectados e encarando de frente a dureza de sua realidade.

O rito de passagem dá ao menino mais do que uma história de sobrevivência da qual se orgulhar; esta espécie de transição para o mundo adulto também revela que a verdade não é tão simples como ele imaginava.

Assim como a TV ligada nos Teletubbies não privou aquelas crianças da realidade lá no início do filme, o fim da inocência que citei anteriormente atinge Spike em cheio a partir desta caçada, sobretudo porque ele passa a desconfiar da honestidade do pai e do que anteriormente enxergava como verdade absoluta. A decepção vem acompanhada de uma maturidade particularmente dolorosa de se enxergar quando pensamos que é apenas um menino de 12 anos, que não deveria estar exposto a situações tão brutas. Quando ele descobre que existe um médico no continente, um homem que vive solitário e queima mortos (e que, segundo seu pai, teria enlouquecido), ele decide embarcar em uma nova jornada e levar a mãe, Isla (Jodie Comer), até o misterioso Dr. Kelson (Ralph Fiennes). A mulher tem uma condição que a deixa confusa e deitada na cama por dias, e Spike quer encontrar uma cura para sua doença sem nome.

Se o primeiro filme apresentava a reorganização do mundo 28 dias após a infecção, mostrando o rápido declínio dos paradigmas sociais em uma sociedade em colapso, o que a nova sequência faz é, ao mesmo tempo, oposto e complementar. A jornada de Spike e Isla força o espectador a confrontar não apenas uma terra há muito abandonada e esquecida, mas a enxergar que a reconstrução de uma sociedade organizada em estruturas de poder, mesmo sem grandes interferências do capital, invariavelmente leva o mundo ao mesmo lugar de guerras, conflitos e desumanidade.

Isso demonstra que não foi em vão a escolha do poema Boots, de Rudyard Kipling, para embalar o primeiro trailer do filme e esclarecer, de forma bastante didática, o caráter cíclico da violência denunciada na obra. Datado de 1903, o poema que também está no longa narra a história dos soldados de infantaria do Exército Britânico estacionados na África do Sul durante a Segunda Guerra dos Bôeres, e explora as consequências psicológicas e o desgaste mental provocado pelo eterno marchar das botas, pelo ciclo repetitivo de morte, frio, fome e corpos de um conflito que não chega ao fim. Neste sentido, a correlação que o filme faz é triste, mas a forma que encontra para chegar na constatação é bonita e impactante: mesmo em outro contexto social, com ameaças diferentes e poucos resquícios do que se entende hoje por civilização, as respostas que encontramos continuam sendo as mesmas, lavadas a tanto sangue que a morte cotidiana se torna apenas mais um evento rotineiro.

A trajetória de mãe e filho em um mundo infectado se comporta como uma espécie de jornada de amadurecimento, em que as melhores convenções de filmes de zumbi se amontoam como percalços que sempre trazem algo a mais do que uma simples injeção de adrenalina na aventura, mostrando a Spike as possibilidades do mundo longe do olhar endurecido de pessoas como seu pai. Existem reflexões, pontos de esperança e inocência que demonstram a existência de complexidade na elaboração deste novo mundo. Assim como o primeiro influenciou toda uma leva de filmes de zumbis no cinema contemporâneo, este também introduz novas questões, sobretudo no caráter evolutivo, que certamente serão mais trabalhadas no desenrolar da franquia.

O casamento do roteiro de Garland com a direção de Boyle cria um fruto em que tudo coexiste com uma perfeita calmaria – a predileção do cineasta por uma estética exagerada e multicolorida, por vezes desnecessariamente frenética, transforma o texto denso do diretor do recente Tempo de Guerra em um organismo vivo. Garland, normalmente melhor nas ideias do que nas execuções, demonstra sensibilidade para fazer com que coexistam alegria e dor, e uma evolução gradual, mas pertinente, dos personagens diante do perigo constante.

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Em 2002, o uso de uma mini DV Cam comum para as filmagens simbolizou uma experimentação de Boyle com o formato digital, um movimento crescente na época e do qual o cineasta fez parte (assim como George Lucas, David Lynch e outros). A escolha deu ao filme um aspecto particular e inconfundível (hoje, parece ter sido filmado com uma Tekpix), e Boyle tenta trazer a mesma inovação usando iPhones no novo longa. Embora a resolução baixa e a pouca complexidade das imagens seja levemente notável, não é algo inteiramente distinguível de câmeras profissionais, dada a evolução tecnológica dos aparelhos. O diretor, então, se cerca de outros recursos para congelar a imagem, criar mais impacto nas cenas mais violentas e seguir impulsionando a discussão sobre a democratização dos recursos– o efeito, chamado Bullet Time, foi feito usando 20 aparelhos celulares ao mesmo tempo, e cria uma espécie de “solavanco” que não permite que as mortes passem pelo espectador sem atenção.

De forma geral, o filme até tem algumas conveniências que incomodam, mas o saldo geral é positivo. E, acredite – os próximos da saga prometem.

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Comentários 1
Bombando
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Daniel Mochon
Daniel Mochon
 · 20/06/2025
Gostei muito do texto! Vi ontem Extermínio, e concordo com você. O simbolismo presente é muito alto
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