"Homem com H": A história do Ney contada com a ousadia que ele merece.

Considero minhas primeiras lembranças sobre Ney Matogrosso muito excêntricas. Primeiro porque não vieram de um disco ou de ouvir a música no rádio como a maioria do país, depois por serem memórias tão fortes que nunca consegui disociar. Cresci numa família muito adepta ao humor nonsense, aquela piada que não faz o menor sentido mas é dita com uma certa frequência em momentos inoportunos e todo mundo dá risada. Uma dessas piadas era minha mãe cantar a música "Rosa de Hiroshima" do Secos e Molhados quando tava silêncio na casa. Ninguém falava nada, vida meio tediosa e, do nada, uma voz feminina: "Pensem nas crianças mudas, telepáticas..."
Minha mãe costumava alternar esse refrão com a voz do Cebolinha falando "isso não impolta" em momentos silenciosos lá em casa. Aparentemente, sem nenhuma explicação.
Outra memória do Ney presente na minha vida foi com as reprises dos Trapalhões que a Globo passava no final dos anos 90. Parecia que ele era do elenco fixo de tanto que lembro de suas participações, seja dançando com o Renato Aragão, popularmente conhecido como Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo.
Image descriptionOu com o Didi homenageando o Ney em uma esquete sem sentido.
https://www.youtube.com/watch?v=P8Jm0iYdlMo
Todas essas lembranças sempre colocaram o Ney dentro da minha casa, apesar das roupas extravagantes e de todo seu rebolado, era um artista que marcou presença e sempre coube muito bem na pequena sala da minha família. Uma figura íntima que vive na memória afetiva de todo o país. Isso é o que aumentou minha curiosidade em saber um pouco mais da história desse cara que interpretava músicas que não saiam da boca dos meus pais. Foi com esse sentimento de que seria abraçado por alguém que cresceu comigo que fui assistir, a convite aqui do Peliplat e Palavra Assessoria, ao filme "Homem com H" que narra a trajetória desse artista gigante brasileiro.
Image descriptionDirigido pelo Esmir Filho, a cinebiografia se mostrou muito fiel a vida do Ney Matogrosso. Durante a coletiva, ele mesmo disse que desejava um filme que contasse a verdade, afinal já mentiram demais sobre sua história por muitos anos e que "um trabalho como esse não se deve ter pudor". As cenas foram tão fiéis que até alguns figurinos eram originais das históricas apresentações do Ney. O diretor conta que na exposição sobre o cantor no MIS - Museu da Imagem e Som em São Paulo, até achou engraçado de ver algumas roupas do acervo pessoal do Ney intercaladas com o figurino do filme que de tão semelhantes foram expostos no museu.

A direção e roteiro estão completamente afiados com tudo o que conhecemos da carreira do Ney quando nos apresentam um filme debochado e poético. Ao longo da história nos sentimos provocados enquanto público mas também provocadores, como se estivéssemos alinhados ao Ney em suas decisões, seja na discórdia com seu grupo Secos e Molhados ou no enfrentamento com seu pai, muito bem interpretado por Rômulo Braga. Ney dizia que a principal figura de autoridade que ele enfrentou foi seu próprio pai e isso fica claro nas fortes cenas iniciais.

É impossível escrever um texto sobre "Homem com H" sem dedicar algumas palavras ao ator Jesuíta Barbosa. Um trabalho exemplar de atuação e composição do personagem principal, era possível visualizar o Ney até quando ele não abria a boca, já que cada trejeito foi estudado pelo ator observando sua peça a ser trabalhada, como contaram os dois na coletiva de imprensa.

O trio (criador, criatura e o diretor do filme) se reunia em chás na casa do Ney para conversar, sempre com Jesuíta muito atento a cada detalhe do cantor, desde sua maneira de falar até de se posicionar sentado enquanto outros falam. O ator fez questão de pontuar que aquilo que vimos era uma junção de personas, obviamente, o fruto de como decifrou Ney Matogrosso somado ao que ele já carregava consigo, suas mentalidade e emoções na época da filmagem. É primoroso! Parece que esculpiram o Ney no Jesuíta que precisou emagrecer doze quilos para o filme e toda essa dedicação abrilhanta ainda mais o resultado final.

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Porém, não é só de cópias fidedignas que esse filmão é feito. Como Ney disse: "não há espaço para pudor numa obra como essa" e ficou bem claro que o diretor Esmir Filho usou e abusou dessa declaração ao criar um universo quase lúdico numa montagem clipada e emocionante em diversos momentos. As escolhas poéticas para retratar importantes fases da vida do Ney são muito acertadas. Por exemplo, durante a linda cena do reencontro do cantor com seu pai intercalado com um show do Ney Matogrosso interpretando "O Mundo É Um Moinho" do Cartola olhando pra sua mãe na platéia. A pessoa que assiste isso e não consegue derrubar nenhuma lágrima do olho já morreu por dentro. "Absolute Cinema", como diz aquela foto estática da internet.
Essa cena ainda tem uma curiosidade muito legal, já que Jesuíta deveria cantar com o olhar voltado para Hermila Guedes, atriz que interpreta a mãe de Ney Matogrosso no filme, porém o ator não esperava que sua mãe na vida real estivesse posicionada logo ao lado da atriz numa figuração muito especial. Claro que isso colaborou pra forte emoção na atuação de Jesuíta que já confessou a ansiedade de sua mãe em se ver na tela do cinema.

A coletiva de imprensa foi um grande chá revelação de segredos de "Homem com H", momentos que todos ficaram na dúvida durante o filme, logo foram confessados pelos criadores da obra, por exemplo, como Jesuíta Barbosa conseguiu cantar tão maravilhosamente bem as músicas do filme? Detalhe, essa é possivelmente a cinebiografia brasileira com mais músicas em sua trilha sonora, foram 17 canções.

A resposta quem trouxe foi o diretor Esmir Filho ao explicar uma técnica que foi carinhosamente apelidada por mim como "uma grande mistureba". Afinal, tiveram momentos onde ouvimos a voz do Jesuíta Barbosa, outras cenas musicais temos uma junção da voz do ator com do cinebiografado e ainda tivemos o próprio Ney Matogrosso dublando Jesuíta nas cenas de cantoria numa metalinguagem ousada que eu não me recordo de ver em outros filmes do gênero.
Image descriptionNey Matogrosso marcou presença na concepção de "Homem com H", além das dublagens, frequentou o set de gravação, emprestou figurinos originais e leu quinze versões de roteiro palpitando em cenas decisivas, como o final do filme que, confessado por eles, foi modificado após perceberem que Ney ainda não se aposentou. O primeiro final dava a entender um encerramento de ciclo do artista sendo que, em 2025, a carreira do Ney Matogrosso está longe de acabar. Pelo contrário, temos exposições, musicais, shows e filmes sobre sua obra que fizeram o diretor Esmir Filho acatar a ideia e transformar o encerramento de "Homem com H" em uma linda celebração.
Image descriptionDentre essas coincidências da vida, o filme é lançado poucas semanas após a morte de Antônio Barros, compositor paraibano que escreveu grandes hits do forró brasileiro, como a música que dá nome ao filme, "Homem com H". O filme retrata o momento em que Ney fica na dúvida sobre gravar e colocar essa música no disco, já que não se sentia no direito de gravar um forró, tinha medo de parecer oportunista com a música nordestina, como já declarou em algumas entrevistas. Gonzaguinha que estava presente no estúdio após a gravação foi quem incentivou o cantor a colocar essa música no disco. Para nossa alegria!

Eis que muitos anos depois, a música que quase não existiu estoura no Brasil todo e vira título de uma das cinebiografias mais legais e ousadas que já vi com clipes marcantes que até remetem ao "Rocketman", musical biográfico sobre Elton John, junto com atuações inesquecíveis num roteiro que faz jus a vida de grandes emoções e intensa liberdade do Ney Matogrosso.
Queridos leitores, vejam "Homem com H" nos cinemas. Vocês vão se emocionar e depois voltarão para suas casas ouvindo toda a discografia do Ney enquanto criam clipes imaginários das músicas dentro do metrô com algumas pessoas te julgando por estar dançando sozinho na plataforma. Ok, acho que isso ficou pessoal demais.

E olha...Um BEIJÃO pra você!
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Comentários 2
Bombando
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Papo de Telinha
Papo de Telinha
 · 10/05/2025
ok, eu ia esperar o streaming… MAS AGORA EU PRECISO VER ISSO NO CINEMA
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Bia Matera
Bia Matera
 · 01/05/2025
Esse filme tá demais! Adorei rever através do seu texto tudo que conferi na telona. Se alguém ainda tinha dúvidas sobre o talento do Jesuíta, esse filme veio para acabar com isso. Que trabalho incrível! Do Jesuíta, do Esmir, do Ney... ansiosa pra reassistir.
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