"Cidade dos Sonhos" e a psicanálise

Spoilers

No que diz respeito ao cinema, os meios para estimular a atividade psicológica do público são as ondas luminosas e as sonoras. No contexto da psicologia do cinema, isso se traduz em ilusões estereoscópicas e ilusões de movimento. A luz e o som na tela imitam as sensações humanas. Os estímulos proporcionados pelas ondas luminosas e sonoras não refletem diretamente a realidade atual, mas recorrem ao reservatório de memórias e experiências armazenadas no público. Isso é obtido ao estimular os sentidos visuais e auditivos do público para ativar percepções, cognições e pensamentos acumulados e inferidos a partir das experiências de vida cotidiana. Pode-se até dizer que, a partir dos Irmãos Lumière, todos os filmes são essencialmente psicológicos. A combinação de som, luz e imagens, em suas inúmeras formas, orienta os processos cognitivos dos espectadores.

Susan Sontag, em sua obra "Sobre Fotografia", propõe: "Aceitar o que a câmera registra como forma de compreender o mundo é precisamente o oposto de conhecer o mundo, porque conhecer o mundo começa com a rejeição da aceitabilidade das aparências do mundo. A fonte de todo conhecimento possível reside na coragem e na capacidade de dizer 'não'". Esse estudioso perspicaz salienta que a humanidade permanece irremediavelmente presa na caverna de Platão, continuando com os velhos hábitos e ainda se deleitando com as imagens que não são a realidade em si, mas apenas as "imagens da realidade". A alegoria do "Mito da caverna" de Platão, conforme vista em seus diálogos com Sócrates e Glauco, simboliza o fato de que as pessoas vivem dentro dos limites dos sistemas de crenças convencionais, e aquilo a que aderem firmemente como verdades e ideais imutáveis nada mais são do que fantasias da "verdade". Platão expressou dúvidas sobre a confiabilidade da percepção sensorial como ponto de partida para todo o conhecimento, o que inevitavelmente leva a uma base pouco confiável para a ação humana. Portanto, em diferentes contextos e graus variados, cada indivíduo serve como "prisioneiro da caverna". Em outras palavras, até certo ponto, todos nós experimentamos o ataque e o engano das "ilusões da caverna".

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Diferentes formas de arte há muito que exploram a relação filosófica entre o mundo objetivo em que vivemos e nossa cognição dele. Cidade dos Sonhos é um desses filmes que questiona a realidade das imagens e a realidade da cognição, um filme que diz "não" às possibilidades da cognição. Ao discutir The Sun Also Rises, o diretor Jiang Wen mencionou o conceito de "cinema aberto", que transforma o meio da narrativa em guia dentro das limitações de tempo e técnicas, proporcionando aos espectadores espaços abertos para sua própria imaginação e seu desenvolvimento. A esse respeito, Cidade dos Sonhos também é um excelente representante.

Vamos começar nossa análise de Cidade dos Sonhos. Se você ainda não assistiu a esse filme, recomendo fortemente que evite ler o conteúdo abaixo. Essa é apenas uma análise do papel dos sonhos no filme a partir de uma perspectiva teórica freudiana. Aceitar um ponto de vista prematuramente pode limitar a exploração das muitas outras possibilidades da história.

A narrativa de Cidade dos Sonhos é dividida em duas partes, com a abertura da caixa azul aproximadamente aos 115 minutos marcando o ponto de diferenciação. A primeira metade segue um padrão narrativo relativamente convencional, embora um pouco caótico, mas fácil de compreender. O enredo principal gira em torno da jovem atriz Betty, que vai para Hollywood para realizar o sonho de atuar. Lá, ela conhece uma mulher chamada Rita, que está com amnésia devido a um acidente de carro (o nome de Rita é uma referência à atriz Rita Hayworth, e o significado desse nome será mencionado mais adiante). Betty e Rita embarcam em uma jornada para recuperar a memória de Rita. Suas únicas pistas são o acidente de carro do dia anterior e um nome que Rita se lembra – Diane. Por fim, as duas descobrem um cadáver feminino em decomposição na residência de Diane e, com muito medo, começam um relacionamento. Os primeiros 115 minutos também incluem várias outras histórias, como um homem sendo assustado por um demônio atrás de uma parede, um assassino desajeitado que estraga uma série de tarefas (mata os alvos, mas é visto repetidamente por testemunhas, necessitando da eliminação de testemunhas), e as experiências infelizes do diretor Adam Kesher (a nova protagonista é imposta a ele pelos financiadores, deixando-o sem nada, e ele acaba tendo que se comprometer).

O período entre 95 minutos e 115 minutos serve como uma transição entre as duas partes da história. A narrativa começa a tomar um rumo bizarro e absurdo, insinuando a falta de confiabilidade das informações apresentadas. Após os 115 minutos, a narrativa torna-se cada vez mais caótica. O nome de Betty passa a ser Diane, enquanto Rita passa a ser Camilla. O único fio narrativo que continua é o relacionamento entre as duas, mas é evidente que Camilla abandonou Diane e escolheu ficar com Adam Kesher. Enquanto Diane está à beira do colapso, ela procura o assassino (o assassino desajeitado da primeira parte) e pede para que ele mate Camilla. No final, Diane acaba com a própria vida com um tiro.

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É claro que esse breve resumo da trama é insuficiente para transmitir o brilho do filme. A história, que explora a complexa relação entre sonhos e realidade, pode ser intrinsecamente alinhada com a teoria freudiana da análise dos sonhos.

Sigmund Freud introduziu um conceito importante em sua obra "A Interpretação dos Sonhos" no quarto capítulo intitulado "O Trabalho dos Sonhos". Esse conceito é conhecido como "identificação". Nos casos apresentados em "A Interpretação dos Sonhos", Freud observou como os indivíduos, nos sonhos, podem "se identificar" com outras pessoas ou figuras, integrando ao sonho diversos desejos subjetivos. Nesses sonhos, está presente a vontade subjetiva do sonhador, bem como aspectos da vontade subjetiva de outra pessoa.

Por exemplo, Freud descreve um caso em que uma mulher sonhava em ir a uma loja comprar salmão defumado para um jantar, mas chegou no momento em que a loja estava fechando. Então, ela tentou pedir comida, mas o telefone não funcionou. Esse sonho refletia o desejo da própria sonhadora, que era não permitir à amiga uma oportunidade de seduzir o marido. Simultaneamente, o desejo da amiga não estava sendo realizado e foi internalizado como desejo da própria sonhadora. Na opinião de Freud, a identidade subjetiva do sonhador não corresponde necessariamente ao "eu" acordado do sonhador; pelo contrário, é o resultado da integração de vários desejos do subconsciente. O "eu" onírico não é o "eu" real, mas uma persona virtual construída pelo subconsciente para realizar desejos.

Teorias obscuras podem ser difíceis de entender. Voltemos ao enredo de Cidade dos Sonhos. Observamos que, o acidente de carro no início do filme, por volta dos 4 minutos, e a cena do jantar de Diane aos 128 minutos são idênticos. Tanto Diane quanto Rita compartilham o mesmo diálogo: "O que você está fazendo? Não paramos por aqui.". Esses elementos recorrentes em Cidade dos Sonhos são pistas claras no filme. Diane, que foi inicialmente apresentada como Betty, parece ter trocado de papel com Camilla, que foi inicialmente apresentada como Rita. Os eventos que ocorrem após os 115 minutos representam a realidade, enquanto tudo antes disso parece ser o sonho de Diane.

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É claro que tirar conclusões com base nessas observações pode ser um tanto tênue e requer evidências. Por exemplo, por volta dos 2 minutos, há uma cena peculiar com uma câmera tremendo e a respiração pesada de uma mulher, que corta para um travesseiro. Isso reflete a situação de Diane adormecendo após saber da morte de Camilla. Outro exemplo é o uso de adereços no filme. A residência de Diane parece ser a mesma do quarto onde Betty e Rita encontraram o cadáver em decomposição. Diane sabia que era a responsável pela morte de Camilla, então parece ter construído esse cenário no sonho dela.

O conceito de "identificação" serve como chave para a compreensão desse sonho. No sonho de Diane, vários fatores complexos, incluindo amor, ódio, impulsividade, arrependimento, idealismo, ciúme e culpa, se misturam para criar os diferentes personagens e elementos do sonho.

Em primeiro lugar, o amor e o ódio que dele decorre desempenham um papel central na história. Essa é a razão pela qual Diane mata Camilla. Camilla e Diane eram parceiras e amigas que tentavam fazer sucesso juntas em Hollywood. No entanto, Camilla rapidamente alcançou o sucesso e ficou noiva do diretor Adam Kesher. Diane queria manter o relacionamento, mas Camilla a rejeitou. Diane a ameaçou, mas Camilla permaneceu indiferente. No final, Diane contratou um assassino para matar Camilla. Em seu sonho, Diane desejava que Camilla ficasse com ela para sempre, então providenciou para que Camilla do sonho perdesse a memória no acidente de carro.

É bastante evidente que na parte antes dos 115 minutos, Rita dependia muito de Betty. Betty ocupava uma posição dominante, enquanto Rita precisava de sua ajuda, proteção e conforto em diversas situações. Essa é a manifestação mais aparente do conceito de "identificação". Betty representa o "eu" idealizado de Diane, incorporando algumas características de Camilla, como excelência, confiança e compostura. Ao longo de seu relacionamento com Camilla, Diane lutou contra sentimentos de inferioridade e, em seu sonho, ela se integra à poderosa Camilla na tentativa de encontrar satisfação. Vale ressaltar que a Camilla do sonho escolhe o nome "Rita", inspirado na famosa atriz de Hollywood Rita Hayworth, que muitas vezes interpretou personagens femme fatale. Essa escolha indica que Diane guardava um profundo rancor de Camilla pelo dano emocional significativo que ela infligiu.

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Além disso, há um conflito entre idealismo e realidade. No início do filme, a dança é uma representação do excelente desempenho anterior de Diane (mais tarde descobrimos que é um estilo de dança chamado "jitterbug", popular no Canadá e no norte dos Estados Unidos). Essa conquista encheu Diane de ideais para sua carreira de atriz. Contudo, depois de chegar a Hollywood, uma série de rejeições e fracassos a levaram à beira do colapso. Ela também se viu incapaz de superar seu relacionamento com Camilla. Portanto, no sonho, Betty possui qualidades que faltam a Diane – uma propriedade em Hollywood deixada a ela por sua tia, que também é uma atriz de sucesso, e habilidades excepcionais de atuação. Diane está ciente dos próprios erros, então ela transforma seus parentes reais, o tio e a tia que a criaram, em estranhos no sonho, para que não fiquem tristes com seus crimes. No final do filme, durante a fantasia final antes de cometer suicídio, os rostos monstruosos do tio e da tia simbolizam a pressão que ela sente da sociedade e da família. Incapaz de lidar com essa pressão, ela escolhe a morte.

Além disso, há um tema de impulsividade e arrependimento. Diane agiu devido a uma onda impulsiva de emoções, contratando um assassino para matar Camilla. Em seu sonho, ela deseja que nada disso aconteça. Assim, o assassino que ela contratou não é muito habilidoso, matando desajeitadamente três pessoas antes de escapar. O parceiro do assassino, o morador de rua desfigurado atrás da parede do restaurante, Winkie, é a presença mais assustadora no sonho de Diane. É essa pessoa quem informa Diane da morte de Camilla, provavelmente fornecendo alguma prova, escondida em uma caixa azul. Diane imagina esse morador de rua como uma figura demoníaca e assusta um homem na rua naquele dia. Infelizmente, os desejos de Diane não se concretizaram e o assassino executou Camilla de maneira impecável. A caixa azul serve como uma existência hipotética semelhante ao gato de Schrödinger — seu conteúdo permanece indeterminado até que seja aberta. Ao ser aberta, todas as fantasias e possibilidades ficam reduzidas a uma única realidade. É por isso que o sonho termina quando a caixa azul é aberta. Diane percebe que a morte de Camilla é um fato, suas esperanças são destruídas e ela finalmente se suicida em sua imaginação.

A parte entre 95 e 115 minutos acontece em uma casa de ópera onde o apresentador grita repetidamente: "No hay banda! É uma ilusão", lembrando uma apresentação religiosa medieval. Sabe-se que uma parcela significativa da população norte-americana é religiosa e a doutrina cristã é uma parte essencial dos valores fundamentais de muitas pessoas. A cena religiosa no sonho de Diane pode ser entendida como um julgamento dos seus pecados contra os próprios valores morais religiosos. Na teoria da consciência de Freud, essa cena pode ser interpretada como uma "função repressiva". Os desejos inconscientes escapam à função repressiva dos sonhos, revelando as fantasias e os sonhos que discutimos anteriormente. Perto do final do sonho, à medida que Diane acorda, a função repressiva começa a suprimir o subconsciente, dizendo repetidamente à própria consciência: "Isso é uma ilusão; é tudo uma ilusão."

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Um ponto não relacionado à teoria psicanalítica é a sátira da "construção de sonhos", que é o tema central de Cidade dos Sonhos. O filme retrata implicitamente o lado sombrio da indústria do entretenimento: a manipulação dos poderes constituídos, as transações financeiras dominadoras e os mecanismos de seleção injustos, entre outras questões. Esses problemas também se refletem no sonho de Diane. Os atores estão no degrau mais baixo de toda a operação e muitas vezes encontram-se em uma posição passiva no negócio. Seu sucesso depende de outras pessoas, mas também pode prejudicá-las. Simultaneamente, o processo de agir pode resultar em uma dolorosa fragmentação da personalidade. Naomi, que interpreta Diane, uma vez revelou em uma entrevista que ela pensou em desistir durante as gravações do filme, sentindo-se deprimida, e até mesmo cogitou brevemente a ideia de cometer suicídio. Ela mencionou várias vezes que o diretor David Lynch estava "explorando o lado sombrio dela".

Isso conclui a análise do filme. Minhas palavras dificilmente conseguem capturar a profundidade do filme, mas representam uma exploração simples e superficial da história usando a teoria da psicanálise clássica. Para realmente apreciar seu significado mais profundo, é preciso assistir ao filme e reconstituir o pesadelo da atriz principal com David Lynch em Cidade dos Sonhos. Embora possa não ser uma jornada agradável, sem dúvida esclarecerá muitas coisas.

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